(Parte 1)
03 / 2010
Os recursos genéticos vegetais, uma herança comum de toda a humanidade há mais de 10.000 anos, foram sendo transformados gradual e crescentemente, a partir do início do século XX, em propriedade de um reduzido grupo de empresas privadas norte-americanas e européias.
Se outrora as sementes constituíam um acervo comunitário e cultural dos povos camponeses e indígenas de todo o mundo, cuja obtenção, guarda e reprodução eram muitas vezes mediados pelo sagrado e tinham na partilha desse bem comum um valor material e simbólico que as tornavam sinônimos da vida, contemporaneamente as sementes transformaram-se em mercadorias, em objetos de negócios cujo objetivo precípuo é o lucro através da exploração e submissão dos produtores rurais de todo o mundo, não por potências estrangeiras, mas por corporações privadas capitalistas de âmbito multinacional.
A apropriação privada oligopolista da geração, reprodução e distribuição de sementes híbridas e transgênicas pelas empresas multinacionais com o controle direto da oferta dos insumos que elas requerem, a determinação da oferta de matérias primas para a agroindústria e o controle efetivo da oferta de produtos para o abastecimento alimentar tem delimitado o tipo, o volume, a diversidade, a periodicidade e a qualidade dos alimentos que serão oferecidos às populações.
Mantido o atual modelo econômico para a agricultura e o comportamento da maioria da população de sentir-se mais como consumidora do que como cidadã, tudo leva a crer que se caminha para uma tirania das grandes corporações multinacionais sobre a dieta alimentar dos povos em todo o mundo.
A tendência econômica é a de se consolidar uma padronização universal da dieta alimentar ou dos tipos de alimentos a serem ofertados aos consumidores na maioria dos países do mundo independentemente da sua história cultural e dos seus hábitos alimentares.
Essa tendência à padronização da dieta alimentar já está sendo efetivada, com graus variados de intensidade, através do controle da oferta de alimentos industrializados nos supermercados, produtos esses originários da agroindústria oligopolizada multinacional.
A intensa propaganda comercial nos meios de comunicação de massa dos produtos dessas agroindústrias multinacionais de alimentos aliada ao estímulo direto e subliminar para o consumo de massa tem permitido a mudança dos hábitos alimentares de grande parte da população para a adoção de dieta alimentar similar àquela praticada pela classe média assalariada dos grandes centros urbanos: consumir alimentos originários das agroindústrias.
Essa aceitação dos alimentos industrializados e homogeneizados, como os temperos instantâneos, os achocolatados, os flocos de milho, as massas secas, os enlatados ou envasilhados, os pães industrializados, as margarinas, os óleos vegetais, os refrigerantes, as carnes congeladas, os alimentos prontos para consumo imediato e outros, não se restringiu aos grandes centros metropolitanos, mas via os meios de comunicação de massa e as facilidades de transportes de mercadorias estruturou a composição alimentar das populações das médias e pequenas cidades e no meio rural.
No meio rural, em particular para os camponeses e povos indígenas, a adoção massiva das sementes híbridas e transgênicas e a aceitação ideológica e prática de uma dieta a partir de alimentos industrializados determinou mudanças tanto na matriz tecnológica e na forma de organização da produção como na matriz de consumo alimentar familiar. Essas mudanças desorganizaram a base social e familiar da vida camponesa e dos povos indígenas facilitando a perda da sua identidade social e étnica. Essa perda de identidade vem contribuindo sobremaneira para a exclusão social dessas populações.
A questão atual com que se defrontam os camponeses e os povos indígenas é a de resistir à tendência crescente da sua exclusão social ou, em situações particulares e minoritárias como nas relações comerciais de integração do camponês com a agroindústria para a produção, à sua inclusão social subalterna aos interesses dos oligopólios multinacionais.
Essa resistência familiar e social à exclusão pressuporá mudanças nas matrizes de produção e na de consumo familiar. Isso significará, antes de tudo, mudanças culturais importantes que afetarão o cotidiano da vida camponesa e indígena.
Padronização da produção e do consumo
O domínio das grandes corporações sobre a produção e distribuição de sementes determina o que, como e quando a maioria dos produtores rurais poderá produzir. Delimita ou interfere de maneira decisiva sobre quais as matérias primas que serão ofertadas para as agroindústrias. E, indiretamente, permite que um grupo de grandes corporações privadas escolha quais produtos estarão disponíveis para o abastecimento alimentar no varejo através das redes nacionais e internacionais oligopolizadas de supermercados.
Esse controle sobre os mercados de sementes, de matérias primas para as agroindústrias e de abastecimento alimentar no varejo é alicerçado econômica e politicamente pelo direcionamento das políticas públicas governamentais para a afirmação do atual modelo econômico que tem como uma das suas estratégias a abertura dos mercados nacionais aos capitais, produtos e patentes das empresas multinacionais. Tais políticas públicas são orientadas pelas diretrizes de livre comércio da OMC e do FMI, respaldadas em leis nacionais que facilitam a oligopolização dos mercados pelas corporações multinacionais e acatadas interesseiramente pelo empresariado de origem local ou nacional.
Do ponto de vista ideológico esse domínio é aceito e legitimado pela maioria da população em conseqüência da manipulação da opinião pública através dos meios de comunicação de massa a qual favorece, seja pela propaganda comercial seja pela afirmação de novos valores de comportamento em relação ao consumo, a aceitação passiva da oferta de novos bens alimentares industrializados produzidos a partir dos interesses econômicos das corporações multinacionais de alimentos.
As grandes corporações tecnocráticas dos meios de comunicação de massa veiculam propagandas comerciais e difundem valores a elas associadas que tornam o consumo a moral do mundo contemporâneo. O consumo surge como modo de resposta global que serve de base a todo o nosso sistema cultural (cf. Baudrillard, 1968 e 1995).
A globalização do consumo torna-se conseqüência não apenas das mudanças nas relações econômicas internacionais que conduziram à abertura dos mercados e à facilitação da comunicação pelos meios eletrônicos, mas pela nova forma de comportamento das pessoas que passa a ser ditada pelo consumo. O mercado oligopolizado estabelece um regime convergente que dita o que consumir. E, mais, os meios eletrônicos que fizeram irromper as massas populares na esfera pública foram deslocando o desempenho do cidadão para as práticas de consumo (Canclini; 1995:23).
Quando as pessoas se deparam com as gôndolas dos supermercados repletas de produtos alimentares artificialmente variados como, por exemplo, as dezenas de tipos de enlatados, de massas secas, de embutidos, de adoçantes artificiais, de pães ou de temperos deixam de perceber que essa diversidade têm a mesma base econômica: a agroindústria multinacional. Os sabores, as cores e as texturas dos alimentos fantasiam seus lugares de origem, mas não são alimentos daquela origem.
A ambiência dos supermercados como dos centros de compras são estimuladoras da alienação do consumidor. Fascinados pela abundância, pela evidência do excedente que o amontoado de objetos sugere, o consumidor deixa-se possuir pela presunção da terra da promissão, mergulhado que está na sensação de opulência (Baudrillard; 1995: 16-19).
Conforme Schwartz (2003), apesar do modelo neoliberal ter provocado crise de proporções catastróficas naqueles paises que o adotaram de maneira ortodoxa, esse modelo saiu fortalecido. A tendência observada é de maximizar o “efeito rede”: a tendência de um produto ou serviço de alta tecnologia aumentar de valor à medida em que o número de usuários ou empresas complementares aumentam, segundo o enfoque liberal do hipercrescimento para sobrevivência.
Portanto, não é de se estranhar que ramos da produção onde a alta tecnologia está presente como o dos organismos geneticamente modificados (como exemplo as sementes transgênicas) e o da química fina (medicamentos) haja uma tendência para o hipercrescimento através da concentração oligopolista.
A tirania estabelecida pelo controle oligopolista das sementes e pela oferta de novos e variados produtos industrializados para o consumo alimentar alterou de maneira substantiva a estrutura e a organização da produção assim como a dieta alimentar dos camponeses e dos povos indígenas. Introduziu elementos novos na concepção de mundo dessas populações, em particular pela negação do tradicional em nome do moderno. Rompeu a multiculturalidade e esterilizou a diversidade de iniciativas.
Nesse complexo processo social os camponeses e povos indígenas perderam as suas identidades. Anômicos, tornam-se parte do exército de reserva de força de trabalho para o capital multinacional ou vão constituindo enormes contingentes populacionais como objeto de políticas públicas compensatórias facilitadoras do clientelismo político e da alienação social.
Ainda que esse processo de exclusão social esteja em curso, centenas de milhões de famílias de camponeses e de indígenas em todo o mundo sobrevivem alternativamente sob as mais diversas formas de resistência. A resistência à exclusão é um dos mais fortes comportamentos de reafirmação da cidadania.
A destruição da multiculturalidade
O camponês e o índio eram, e em diversas regiões ainda o são, produtores de ampla variedade de cultivos (e criações). Cada um deles, seja a família ou a comunidade, deveria produzir, selecionar e guardar as suas próprias sementes para o plantio na temporada seguinte, inclusive realizando trocas com outros grupos camponeses num processo de partilhas que lhes permitiam aumentar a diversidade genética à sua disposição. Com essa prática milenar obteve-se variedades bem adaptadas a condições de produção específicas e com boa produtividade relativa.
No entanto, desde o início da década de 70 os camponeses e povos indígenas vêm incorporando no cotidiano da suas vidas duas novas matrizes ou maneiras de ser: a de produção agrícola a partir de sementes híbridas e transgênicas e a de consumo alimentar familiar a partir de alimentos industrializados. As mudanças que se verificaram nessas duas dimensões da vida restringiram as margens de decisão dessas populações com relação ao quê e como produzir, ao quê e como se alimentar.
Camponeses e índios ao introduzirem no seu universo de produção uma nova matriz tecnológica tiveram que aceitar também, pela imposição da assistência técnica pública e privada e do crédito rural governamental subsidiado, novas práticas de motomecanização, de adubação, de combate às pragas, de controle de doenças e de plantas invasoras. Seus produtos, agora destinados aos mercados internacionais como a soja, o milho, o café, o algodão e a cana de açúcar, entre outros, exigiram maior escala de produção para se tornarem competitivos com a produção dos grandes empresários rurais. A ampliação da área plantada na unidade de produção rural do camponês e indígena eliminou, na grande maioria das regiões do país (no caso do Brasil), os esforços familiares para a produção de produtos destinados ao autoconsumo.
Ao não mais utilizarem a semente varietal nativa (semente crioula), historicamente preservada pela prática da produção e de consumo do produto pelos camponeses e indígenas, abandonou-se, também, a maneira tradicional camponesa e ou indígena de produzir. A alteração na matriz de produção afetou a divisão do trabalho familiar e comunitário no mundo camponês, as práticas agrícolas e as de criação, a natureza dos insumos utilizados para a produção, a diversificação de cultivos e criações e as suas relações com o mercado, com a natureza e com a saúde das pessoas.
Essa imersão no mercado capitalista de “commodities” rompeu com valores e com comportamentos que configuravam os jeitos de ser e de viver do camponês e do índio. Uma das mais relevantes rupturas foi conseqüência da inserção dessas populações nos mercados de consumo de massa. Mudaram os tipos de sementes e de insumos para a produção e com eles mudou, por efeito indireto, a dieta alimentar. Introduziu-se na vida das famílias camponesas e indígenas os hábitos alimentares do proletariado urbano: os alimentos industrializados.
Camponeses e índios, ao trazerem para dentro das suas casas os valores da classe média urbana, deixaram-se levar pelo consumo de massa e adquiriram, seja por motivo de comodidade no trabalho doméstico, seja para aparentarem status social perante seus pares e os estranhos, hábitos alimentares tipicamente urbanos: todos os itens da sua dieta alimentar vêm sendo adquiridos ou nos supermercados urbanos ou nos mercados rurais (bodegas, quiosques, armazéns ou tendas).
Na atualidade, com exceções muito limitadas, todos os produtos da produção camponesa e indígena são destinados para o mercado de “commodities”. A produção para o autoconsumo foi drasticamente reduzida ou na maioria dos casos como, por exemplo, no sul do Brasil, eliminada. Nem a proteína para o consumo alimentar familiar é obtida com a criação de frangos e suínos. No limite da “descampesinação” e da perda de identidade étnica, os temperos (como o cheiro verde), as verduras e as frutas são adquiridos nos supermercados.
Apesar da adoção da nova matriz de produção, os camponeses e índios não ampliaram, na sua maioria, seus rendimentos líquidos. Empobrecidos, vêem seus filhos migrarem para as cidades em busca de emprego sazonal para obterem rendimento complementar para a família. Desestrutura-se a organização familiar camponesa. A possibilidade futura da família singular ou do grupo doméstico permanecer na terra deixa de ser uma certeza. Com a migração dos jovens para as cidades permanecem na terra apenas os mais velhos.
A assistência técnica rural governamental e a privada, ao não apoiarem concepções de matrizes tecnológicas alternativas às dominantes sob controle das grandes corporações multinacionais, contribuíram direta e indiretamente para esse desenraizamento dos camponeses e dos povos indígenas.
A vida econômica do camponês e do índio, apesar de tecnologicamente modernizada, segundo o padrão dominante, integrada ao mercado e inteiramente monetarizada, não garantiu recursos líquidos suficientes para a reprodução simples dos meios de vida e de trabalho da maioria dessas populações. Nem a produção para o autoconsumo, nem o artesanato, permaneceram como alternativas de geração de renda. Com muito pouco dinheiro no final de cada ciclo agrícola, camponeses e índios permaneceram ou tem permanecido na dependência das políticas compensatórias dos governos. Portanto, já vivenciando de perto a exclusão social.
O abandono dos métodos e processo tradicionais na produção provocou o afastamento das práticas artesanais, sejam aquelas relacionadas com a alimentação, como exemplos o fazer o pão caseiro ou a massa de farinha de trigo, seja a de aproveitamento e estocagem de produtos agrícolas e animais através das compotas de frutas de época ou da salga e defumação de carnes. Não só deixaram de possuir as habilidades artesanais do fazer como estão sendo perdidas as memórias do como fazer. O não fazer e o não saber como fazer culminaram no não saber o que fazer. Mudou a maneira de produzir, mudou a forma de consumir, mudou a percepção do mundo vivenciado. Mudou, então, a cultura desses povos (Carvalho: 2002).
Essa mudança cultural deu-se em curto prazo: foi produto de uma modernização excludente, determinada autoritariamente pela globalização econômica e ideológica neoliberal. Milhões de camponeses abandonaram as suas terras e inúmeros povos indígenas tornaram-se reféns das tutelas políticas e das ajudas financeiras governamentais.
A falsa dicotomia entre o tradicional e o moderno foi enraizada e sectarizada. Perdeu-se a capacidade de adaptação, de inovação e de conviver com o diferente. Na ideologia do consumo de massa o “próprio” foi descartado: desterritorializou-se o produto local. O produto adquirido do alheio, sob o apelo de ser do outro, industrializado e de presença internacional, passou a ter representação fetichizada de prestígio porque moderno. O “nosso” foi negado. Perdeu-se nesse processo a fidelidade a elementos relevantes da história camponesa e indígena e com isso fragilizaram-se as identidades sociais. Camponeses e indígenas foram e estão sendo desenraizados.
A multiculturalidade tem sido esgarçada. Esse novo rearranjo sócio-econômico e cultural, imposto pelas corporações multinacionais em situação de oligopólio, não permite que haja a integração socioeconômica e cultural entre o tradicional e o moderno.
consumação, soberania alimentar, camponês
, Brasil
Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra do Brasil
Em junho de 2002, durante a realização da Conferência Mundial da FAO – ONU, a Via Campesina Internacional decidiu implantar a campanha “Sementes patrimônio do povo a serviço da humanidade”. Com o objetivo de fornecer subsídios para o trabalho dos militantes e membros das organizações sociais e camponesas do Brasil, assim como para o debate com o conjunto da sociedade brasileira, a Via Campesina Brasil organizou a publicação do livro Sementes - Patrimônio do povo a serviço da humanidade, editado pelo Editora Expressão Popular em 2003.
Contando com a contribuição de pesquisadores de diversos países, sob coordenação do professor e engenheiro agrônomo Horácio Martins de Carvalho, uma série de aspectos relativos às sementes, como os culturais, os científicos, os econômicos e alimentares foram abordados de diferentes ângulos.
Selecionamos desse livro um texto escrito pelo professor Horácio de Carvalho. Ele nos apresenta as relações entre os objetivos da grandes indústrais farmacêuticas e da agroalimentação e as mundanças dos modos de produção, de consumo e culturais que atingem os camponeses e indígenas em decorrência das transformações às quais as sementes, um patrimônio da humanidade, vêm sendo submetidas.