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A lei de 10 de julho de 2001 - O Estatuto da Cidade

Esta nova legislação permite ao poder público intervir no mercado de terras e nos processos de urbanização, e ir além da simples normatização dos usos dos territórios.

Nelson SAULE JR, Renato CYMBALISTA, Raquel ROLNIK

07 / 2004

Os governos municipais enfrentam grandes dificuldades de controlar e orientar os usos, o desenvolvimento e a expansão das cidades. Dessa maneira, o crescimento e o desenvolvimento das cidades ficam entregues principalmente ao comportamento dos mercados imobiliários, formal e informal, que objetivam o atendimento imediato às demandas dos diferentes setores da cidade, de forma a maximizar os lucros dos empreendedores. Agora, pela primeira vez na história brasileira, temos uma regulação federal para a política urbana, definindo uma concepção de intervenção no território que se afasta do tradicional caráter tecnocrático que apenas aponta os usos ideais ou desejáveis para cada parte do território.

Após mais de dez anos de lutas, foi aprovado no Congresso o Estatuto da Cidade, lei que regulamenta o capítulo de política urbana da Constituição de 1988 (artigos 182 e 183). Com ele, os municípios dispõem de um marco regulatório para a política urbana, que pode levar a importantes avanços. O Estatuto da Cidade dá respaldo constitucional a uma nova maneira de realizar o planejamento urbano. Sua função é garantir o cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbana, o que significa o estabelecimento de “normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos” (art. 1o). Para isso, o Estatuto da Cidade coloca à disposição dos municípios uma série de instrumentos que podem intervir no mercado de terras e nos mecanismos de produção da exclusão.

Os instrumentos que fazem parte do Estatuto situam-se em três campos :

  • um conjunto de novos instrumentos de natureza urbanística voltados para induzir - mais do que normatizar - as formas de uso e ocupação do solo ;

  • uma nova estratégia de gestão que incorpora a idéia de participação direta do cidadão em processos decisórios sobre o destino da cidade ;

  • e a ampliação das possibilidades de regularização das posses urbanas.

INSTRUMENTOS DE INTERVENÇÃO NO USO E OCUPAÇÃO DO SOLO

O Estatuto da Cidade regulamenta dispositivos que procuram combater a especulação imobiliária nas cidades. A partir de agora, áreas consideradas vazias ou subutilizadas situadas em regiões dotadas de infra-estrutura estão sujeitas à edificação e parcelamento compulsórios (artigos 5º e 6º). O município tem o poder de determinar os critérios de definição das terras que considera ociosas ou subutilizadas, e poderá definir prazos e condições para induzir o aproveitamento dos terrenos pelos proprietários - no mínimo um ano para a entrada de um projeto no órgão competente, e dois anos a partir de sua aprovação para a efetiva edificação. No caso do não-cumprimento dos prazos ou condições da edificação ou utilização compulsória, o Município poderá aplicar sobre esses terrenos o instrumento do IPTU progressivo no tempo (artigo 7o).

Esse instrumento consiste no aumento progressivo da alíquota de imposto sobre a propriedade predial e territorial, por até cinco anos consecutivos. A alíquota de IPTU poderá dobrar de ano a ano, podendo atingir um máximo de quinze por cento do valor venal do imóvel. Se o proprietário ainda assim não realizar o aproveitamento do terreno, a cobrança poderá permanecer na alíquota máxima. Se após cinco anos de cobrança do IPTU progressivo o proprietário não tiver cumprido a obrigação de parcelamento, edificação ou utilização, o Município poderá desapropriar o imóvel pelo preço-base de cálculo do IPTU, pagando ao proprietário com títulos da dívida pública (artigo 8º).

Esse conjunto de instrumentos - edificação compulsória, IPTU progressivo e desapropriação com pagamento em títulos da dívida pública - pode representar uma possibilidade de intervir efetivamente no crescimento da cidade, promovendo uma ocupação mais intensa nas áreas onde a infra-estrutura é mais presente e dessa maneira reduzindo a pressão pela urbanização das áreas periféricas, sem infra-estrutura e ambientalmente frágeis. Este combate ao espraiamento significa também menores necessidades de deslocamento, otimizando o uso da malha viária e das redes de transporte público. Estão também disponíveis no Estatuto instrumentos que permitem que o poder público financie parte dos investimentos que realiza no espaço urbano, de forma que os empreendedores paguem ao Município em torça do direito de edificar - é o caso do solo-criado e das operações urbanas (artigos 28 a 34).

INSTRUMENTOS DE REGULARIZAÇÃO FUNDIÁRIA

Outro conjunto de instrumentos previsto no Estatuto da Cidade trata da regularização fundiária de áreas ocupadas e ainda não tituladas. Grande parte de nossas cidades é constituída por assentamentos irregulares, ilegais ou clandestinos, que contrariam de alguma forma os padrões legais de urbanização. Entretanto - embora a urbanização de favelas seja defendida e praticada há décadas - a titularidade definitiva destas áreas para seus verdadeiros moradores vem esbarrando em processos judiciais intermináveis e enormes dificuldades de registro junto aos cartórios. Para enfrentar esta questão, o Estatuto aprovado no Congresso prevê a regulamentação do usucapião urbano para regularizar posses em terrenos privados (artigos 9º ao 12). Esse instrumento só se aplica para imóveis até 250 metros quadrados, que são a única moradia do ocupante da terra há mais de cinco anos, sem contestação por parte do proprietário legal. O usucapião urbano pode ser concedido de forma coletiva, para um grupo de moradores que ocupa um mesmo terreno.

INSTRUMENTOS DE GESTÃO DEMOCRÁTICA DA CIDADE

O Estatuto incorpora a idéia da participação direta e universal dos cidadãos nos processos decisórios da política urbana, tornando obrigatória a participação popular na definição da política urbana (artigos 43 a 45). Estão previstos instrumentos como conferências e conselhos de política urbana nos âmbitos nacional, estadual e municipal (veja DICAS Nº 137), audiências e consultas públicas, além da obrigatoriedade de implementação do Orçamento Participativo (veja DICAS Nº 92). Estes instrumentos devem ser utilizados pelos municípios para abrir espaço para os interesses dos cidadãos em momentos de tomada de decisão a respeito de intervenções sobre o território, e são obrigatórios nos Planos Diretores. Ainda no campo da ampliação do espaço da cidadania no processo de tomada de decisões sobre o destino urbanístico da cidade, o Estatuto prevê o Estudo de Impacto de Vizinhança para empreendimentos que a lei municipal considerar como promotores de mudanças significativas no perfil da região onde se instalar (artigos 36 a 38). O Estudo de Impacto de Vizinhança deverá levar em conta os efeitos positivos e negativos decorrentes dos grandes empreendimentos no que diz respeito à vida dos moradores das áreas próximas ao possível empreendimento, e deverá obrigatoriamente garantir o acesso aos documentos e a consulta pública junto à comunidade afetada.

COMO APLICAR

Para aplicar os instrumentos urbanísticos previstos no Estatuto, o Poder Executivo do município deverá obrigatoriamente produzir um Plano Diretor, uma lei que deverá ser aprovada na Câmara, que é o instrumento básico da política de desenvolvimento e expansão urbana (artigos 39 a 42). O Plano Diretor é obrigatório para municípios com mais de 20 mil habitantes, e sua função principal é expressar os instrumentos por meio dos quais o município vai garantir o cumprimento da função social da cidade e da propriedade urbanas e garantir o atendimento às necessidades dos cidadãos quanto à qualidade de vida e justiça social. Para implementar um Plano Diretor, o Executivo deve mobilizar uma equipe técnica, que fará uma leitura da situação e dos conflitos existentes. A partir dessa leitura, será possível definir quais são os instrumentos mais interessantes, bem como os critérios para sua aplicação. Alguns dos instrumentos podem exigir que sejam feitas leis específicas para sua implementação.

O Plano Diretor deverá contar necessariamente com a participação da população e de associações representativas dos vários segmentos econômicos e sociais, não apenas durante o processo de elaboração e votação, mas, sobretudo, na implementação e gestão das suas diretrizes. Assim, mais do que um documento técnico, o Plano é um espaço de debate dos cidadãos e de definição de opções, conscientes e negociadas, por uma estratégia de intervenção no território. Após sua aprovação na Câmara, o Plano Diretor precisa ser revisto periodicamente.

DIFICULDADES

O Estatuto da Cidade dá aos municípios o poder de interferir sobre os processos de urbanização e sobre o mercado imobiliário. Isso significa que a Prefeitura pode mexer com práticas e privilégios muito arraigados, principalmente no que se refere aos maiores proprietários urbanos Também as práticas clientelistas envolvendo a regularização fundiária podem ser combatidas. Alguns setores provavelmente insistirão pela permanência desses privilégios. É fundamental que a Prefeitura envolva ativamente os diferentes setores da sociedade nos debates dos instrumentos e do Plano Diretor. Apenas dessa maneira poderá ficar claro para todos que em alguns casos é preciso que uma minoria abra mão de seus privilégios para que sejam garantidos os recursos territoriais e materiais que permitirão um crescimento mais equilibrado da cidade.

RESULTADOS

Os potenciais resultados da aplicação democrática dos instrumentos propostos no Estatuto da Cidade são muitos : a democratização do mercado de terras ; o adensamento das áreas mais centrais e melhor infra-estruturadas, reduzindo também a pressão pela ocupação das áreas mais longínquas e ambientalmente mais frágeis ; a regularização dos imensos territórios ilegais. Do ponto de vista político, os setores populares ganham muito, à medida que a urbanização adequada e legalizada dos assentamentos mais pobres passa a ser vista como um direito, e deixa de ser objeto de barganha política com vereadores e o poder Executivo. O Legislativo também ganha, pois a superação das práticas clientelísticas pode elevar o patamar da política praticada na Câmara, em direção aos seus reais objetivos : a elaboração e aprovação das leis e o acompanhamento crítico da atuação do Executivo. O Estatuto abre novas possibilidades de prática do planejamento e da gestão urbana, mas depende fundamentalmente de seu uso eficaz no nível local. Mesmo havendo perdas pontuais para alguns dos grandes proprietários urbanos, a coletividade tem muito a ganhar com a democratização do planejamento e da gestão urbana que o Estatuto agora permite.

Palavras-chave

moradia, política urbana, planejamento urbano, cidadezinha


, Brasil, São Paulo

dossiê

O movimento social e a luta pela moradia popular na França e no Brasil

Notas

Esta ficha foi produzida no quadro da cooperação Abong-Coordination Sud

Tradução em francês « La loi du 10 juillet 2001 au Brésil : le statut de la ville »

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