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Sobre as cinzas do vulcao

Um olhar sobre La Paz, Bolivia

Cristiana TRAMONTE

08 / 1993

Um pais forte.Vivo, cheio de esperanca. Bolivia escura, de ruas cinzentas, quebradas aqui e acola pelos tecidos vigorosamente coloridos das "cholas"(’indias). Embrulhadas em suas cinco saias (a india boliviana nao dispensa nenhumadelas)vergam sob peso dos "aghuayos"* nos quais carregam as criancas, a mercadoria pequena e a vida. Decididas, la vao indo elas, passo duro em sapatinho delicado, desafiando as ruas e a gente da cidade.

Ha muito pouco vieram para a zona urbana. Trazem a esperanca e a lembranca de "tiempos mejores" (" el tiempo de los campesinos"). As mais jovens trazem a faceirice. As antigas, os olhos esgazeados e a boca cheia de coca (para esquecer a fome e esquentar o sangue). Nos muros,bares ,livrarias e feiras um grande silencio; quebrado aqui e mais acola pelo idioma "quechua" e "aymara" vigorosamente tagarelado em cada esquina pela populacao indigena.

A cena boliviana fragmenta-se, polarizada. De um lado, explos~oes populares violentamente esmagadas pelas Forcas Armadas. De outro (e convivendo)a submissao india a uma realidade que vai-se impondo lentamente; nova, industrializada, estrangeira. Sufocados pelo gigantismo da burocracia e pelo emaranhado do forte jogo politico que governa o pais, a populacao "campesina" resiste, acocorando-se nas ruas, impondo sua presenca.

Eles invadem tudo com suas roupas e sua pele morena. Enovelam o mundo com suas trancas, esquentam o ar com suas " quenas" e "samponas"**, assopradas com todo o folego da brincadeira: sao os indios bolivianos com seus inevitaveis "gorrinhos de orelha" (como nos os chamavamos), que mesmo o sol mais ardente do altiplano boliviano nao consegue arrancar.

Olhos negros me fitam. Chamam-me " estrangeira".

- " A senhorita precisa aprender a ser bonita", a india morena me diz, com um olhar desaprovador para meus cabelos e minhas botas. Eu me sento a seu lado. Delicadamente a india (que agora ja mechama " chiquita")vai relembrando um antigo costume das " nustas" (princesas)incas: vai trancando meu cabelo com um fio delicadamente tecido durante muitos dias em seu "telar" manual. A cada volta de minha tranca, vao se desfiando anos de historia de uma cultura a duras penas mantida ainda quase intacta. Ela me explica que ja nao ha mais tempo para os tracados finos. Os turistas nao compreendem o trabalho e a importancia do fio tecido, por isso querem um tracado mais colorido, rapido e barato: hoje ela os faz em grande quantidade, todos iguais (e mais rapido e os turistas compram bem). O ar cheira a "aji" (tempero ardente, apimentado)e " choclo" cozido (milho macio, alimento basico da populacao pobre).

Um sopro seco atinge a cidade. Vagando nas ruas (desempregados ou subempregados), 70% da populacao boliviana. A propaganda do consumo atira-se as ruas, violenta, agressiva. Mas os indios do altiplano so compreendem seu idioma, nao se adaptam aos "jeans" e somente a musica entrecortada do bambu lhe atinge o coracao.

Ha uma greve na ferrovia, mas a atendente nos diz, indiferente, que as chuvas bloquearam os trens.

Nos muros, pichacoes que nao puderam ser terminadas ou foram apagadas pela violencia das Forcas Armadas (presenca constante no cenario). Leves tentativas de contestacao ao regime (talvez um grande vulcao oculto).

Mas a tarde caminha lentamente na terra boliviana.

* aghuayos= panos coloridos utilizados para embrulhar criancas e objetos, carregados as costas pelas indias.

** quenas e samponas= flautas horizontais e verticais feitas com bambu.

Mots-clés

culture populaire, paysan


, Bolivie, Altiplano

Source

Autre

TRAMONTE, Cristiana, DIALOGO CULTURA E COMUNICACAO, Cooperativa dos Funcionarios do Banco do Brasil in. Rev. da Cooperativa dos Funcionarios do Banco do Brasil, 1986/08 (BRASIL), 357

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