As plantas fornecem tudo o que os humanos precisam para viver: moradia completa, alimento, energia, transporte, remédios e rituais. Portanto, as plantas formam a base da cultura material da humanidade.
A ligação estabelecida entre homem e plantas pode ser tão intensa, que a simples troca e/ou substituição forçada de um alimento imposta a um povo pode destruir a sua cultura. Parte dos povos indígenas de toda a América desapareceram dessa forma. É possível argumentar que este seja mesmo um objetivo dos formuladores de políticas do agronegócio e sua arma mais recente, a indústria transgênica. Parece evidente, pelo menos, a sua estratégia de substituir a cultura do milho, trigo, soja, feijão e outras, pelas supostamentes equivalentes commodities milho, trigo, soja, feijão e outras, principalmente introduzindo o caráter de uniformidade. Essa mudança que está sendo feita de modo impositivo, traz consigo não somente a redução das espécies agrícolas cultivadas, mas a uniformização e redução de suas variedades. No limite, esse processo poderá culminar em uma vulnerabilidade excessiva das espécies agrícolas e no risco de perda de grande parte da diversidade de culturas e povos.
O alimento vegetal como cultura de todos os povos
No Brasil, as riquezas dos sistemas agroflorestais dos povos indígenas e a agricultura familiar são bem conhecidas. No entanto, a visão depreciativa da sociedade em geral em relação a esses povos e à população rural em geral aprofundou o descaso com muitos sistemas de conhecimentos nativos. A concepção de que a propriedade intelectual é apenas reconhecida quando produzida em laboratórios por homens de avental branco é, fundamentalmente, uma visão preconceituosa do desenvolvimento científico.
Essa discriminação também é evidente quando simplesmente se colocam as contribuições intelectuais dos cientistas das grandes empresas acima das contribuições intelectuais dos lavradores que, ao longo de mais de 10 mil anos, desenvolveram os recursos genéticos animais e vegetais através da domesticação e da criação de variedades.
Uma boa parcela da alimentação (incluindo bebidas) saudável do povo brasileiro é herança dos povos indígenas. Feijão, mandioca, milho e uma série de frutas e plantas medicinais, foram deles herdados e incorporados a nossa cultura, as quais somaram-se as contribuições alimentares e culturais de significativa importância trazidas da África e da Europa.
Uma grande contribuição dos negros africanos para a cultura alimentar do povo brasileiro merece destaque: o prato típico brasileiro mais conhecido em todo o mundo e um dos mais apreciados nacionalmente – a feijoada – foi elaborada, por extrema necessidade alimentar, a partir dos restos de carnes da casa-grande, ou seja, foi inventada pelos escravos nas senzalas.
No México, o milho foi domesticado e fez parte central da cultura dos povos Astecas e Maias. Atualmente, continua sendo a principal base da alimentação mexicana, usado principalmente para preparar as tortilhas. A maior parte do povo asiático tem sua cultura associada ao arroz e à soja. Muitos rituais são realizados nessa região para celebrar o plantio de mudas e a colheita do arroz. No Oriente Médio, local de origem geográfica de várias espécies de plantas e da mais utilizada pela humanidade – o trigo – é exemplo de uma cultura universal.
A indissociável relação entre cultura e alimento é reconhecida há muito tempo e a história nos mostra sucessivos casos em que estratégias de dominação de povos incluíam a imposição de novo hábito alimentar. O exemplo moderno dessa estratégia é a disseminação das redes de restaurantes do tipo fast food, que oferecem refeições pobres em diversidade, produzidas em escala industrial, e que não reconhece importantes aspectos da cultura local relacionada aos hábitos alimentares.
A diversidade de espécies e variedades vegetais como condição necessária para se praticar a agricultura sustentável
Em ecologia, é bem conhecido o fato de que a sustentabilidade de um agroecossistema depende de uma alta quantidade de matéria seca produzida: a regra básica é não permitir que mais de 50% da matéria seca produzida pelas plantas seja removida do sistema.
Na região Oeste de Santa Catarina, observa-se um grande crescimento da atividade leiteira, em sistema de pastoreio cujo número de animais por unidade de área parece ser excessivo. Nesse caso, o consequente excesso de extração de matéria seca do solo seria inevitável, e levaria à exaustão das terras. Dados de pesquisas realizadas na região, pelo Núcleo de Estudos em Agrobiodiversidade/NEABio da Universidade Federal de Santa Catarina/UFSC. Apontam que uma lavoura de milho crioulo da variedade MPA 1, com uma população de 57 mil plantas por hectare, produziu 15,7 toneladas por hectare de matéria seca. Isso significa que apenas 7,8 toneladas por hectare de matéria seca poderiam ser retiradas da lavoura, na forma de forragem.
Não é difícil concluir, portanto, que a introdução de um sistema de uso da terra excessivamente baseado em uma única atividade dificilmente será sustentável. Assim, a manutenção da diversidade biológica de animais, plantas e microrganismos é de importância fundamental para a continuidade de sistemas de uso da terra diversificados e estáveis.
O alimento vegetal como fonte de nutrientes
Como alimento, os vegetais fornecem aos animais quase todos os nutrientes de que eles necessitam. No caso dos humanos, os alimentos de origem vegetal são imprescindíveis, porque fornecem as proteínas e mais especificamente as suas unidades estruturais – os aminoácidos essenciais, porque os humanos não conseguem sintetizá-los. Uma refeição de boa qualidade só ocorre quando se utilizam diversos alimentos vegetais. Assim, para suprirmos quantidade e qualidade de proteínas numa refeição à base de vegetais, precisamos de uma mistura deles, pelo menos uma combinação de uma leguminosa e uma gramínea.
Os grãos da espécie leguminosa fornecerão a maior quantidade de proteínas e todos os aminoácidos de uma dieta balanceada, com exceção do aminoácido metionina. Os grãos de espécies gramíneas, por sua vez, são ricos nesse tipo de aminoácidos. Dessa forma, uma refeição à base de arroz e feijão, ou feijão e milho ou feijão e pão de trigo, é suficiente para suprir as necessidades em quantidade e qualidade de proteína, além de fornecer muitas fibras, principalmente a partir de grãos integrais.
Os grãos das leguminosas e o embrião das demais espécies vegetais fornecem esses ácidos graxos essenciais. As necessidades de vitaminas são supridas parcialmente pelos grãos de diversos tipos de plantas. Mas os alimentos crus na forma de saladas verdes e de frutas (diversas) são necessários para suprir vitaminas, pois o cozimento e o armazenamento de alimentos por longo tempo destrói muitas delas. Tanto o feijão como o arroz e o milho e as verduras e frutas fornecem minerais, mas o consumo de raízes é importante para a complementação da quantidade e qualidade de minerais necessários na alimentação.
É fácil deduzir, portanto, que quanto mais diversificada for uma dieta, melhor é sua qualidade. Qualquer proposta bem fundamentada de melhoria da saúde humana passa por uma adequação da alimentação, entendendo-se boa qualidade da alimentação como sinônimo de ‘diversidade de alimentos’, ou seja, ‘diversidade de espécies e variedades’ de plantas consumidas nas refeições.
Propostas consistentes para proporcionar à população uma boa qualidade da alimentação devem, ao menos, incluir programas para fortalecimento da agricultura familiar, agricultura de autoconsumo, agricultura urbana e horta individual e comunitária.
Há suficiente alimentos para todos, mas são mal distribuídos
A fome no mundo não está diretamente relacionada com a escassez de alimentos. A fome está relacionada à falta de distribuição honesta da riqueza gerada no planeta. Através dos dados oficiais da FAO é possível demonstrar que se produz alimentos suficientes para alimentar toda a população humana.
O tema é tratado com clareza em livros clássicos como O Mercado da Fome (Susan George), Geografia da Fome (Josué de Castro), Biopirataria: A pilhagem da natureza e do conhecimento (Vandana Shiva) e Nanotecnologia: Os riscos da tecnologia do futuro (Grupo ETC).
Por outro lado, a produção de alimento, quando analisada com base no seu valor energético, não é compatível com a demanda da população atual e a projetada para o planeta. O modelo de agricultura atual tem balanço negativo para quase todas as culturas. Por esse motivo que os norte-americanos e europeus têm uma agricultura altamente subsidiada.
Propostas milagrosas para solucionar o problema também vêm sendo oferecidas pela indústria dos transgênicos. Em países pobres, onde a diversidade de culturas ainda é grande, também é grande o repertório de possibilidade alternativas à massificação de tipos restritos de produção e consumo de alimentos. Programas de hortas individuais, hortas comunitárias, agricultura urbana e a reforma agrária são alguns exemplos dessas alternativas.
Assim, a chave para a melhoria da condição nutricional dos povos é o cultivo da diversidade e o resgate e fortalecimento das profundas ligações dos humanos com o seu meio ambiente. É por isso que insistimos em dizer que na palavra “agricultura” o termo “cultura” é o mais importante. Essa noção também diferencia “agricultores” de “produtores rurais”. Os agricultores são o guardiães do conhecimento acumulado por milênios e os responsáveis pelo seu contínuo desenvolvimento.
agriculture, biodiversité, sécurité alimentaire
, Brésil
Este artigo faz parte de capítulo do livro Kit Diversidade: Estratégias para a Segurança Alimentar e Valorização das Sementes Locais. Organizado por Adriano Canci, Antônio Carlos Alves e Clístenes Antônio Guadagnin (2010). Editora Gráfica McLee - São Miguel do Oeste-SC- Brasil