Este artigo se inspira de um certo número de experiências e reuniões às quais eu participei recentemente, especialmente como intérprete. São reflexões que desejam chamar a atenção dos leitores sobre desafios inerentes ao desenvolvimento de alternativas econômicas no contexto das múltiplas crises mundiais atuais.
Comércio justo e compra local : complementaridade?
Um seminário organizado por Max Havelaar France sobre “os Territórios do Comércio Justo” dá para pensar. Este programa, que se beneficia de subvenções de um programa Europeu, utiliza a definição seguinte:
“Um Território do Comércio Justo é uma cidade, vilarejo, país, zona, ilha ou distrito que se compromete em apoiar o Comércio Justo e a utilizar os produtos com selo de qualidade provenientes do Comércio Justo. Qualquer território pode se engajar no procedimento, que tem a tarefa de implicar todo mundo.
Associações locais, ONGs de matriz religiosa, empresas, escolas e indivíduos contribuem todos para a construção de um Território do Comércio Justo, comprometendo-se a trabalhar da melhor forma possível para apoiar o Comércio Justo e para promover o selo FAIRTRADE”.
O comércio justo, assim como a alimentação orgânica local e o setor de abastecimento próximo, até direto, do produtor ao consumidor para os alimentos ou os outros bens (especialmente os PSLPC: Parcerias Solidárias Locais entre Produtores e Consumidores), constituem uma tendência forte emergindo hoje. Uma diferença entre estes dois conceitos consiste no fato que o primeiro está baseado em critérios específicos do Comércio Justo (cf. os sites de Max Havelaar e o do World Fair Trade Organisation - WFTO – outrora IFAT), ora o segundo se encontra ancorado nos princípios do consumo responsável no plano local. Mas os dois eliminam os atravessadores e visam garantir rendas condizentes para os produtores. Isto significa que o produtor ganha melhor sua vida do que vendendo seus produtos aos hipermercados (que tentam pagar um mínimo aos produtores para aumentar sua margem de lucro). Agindo assim, a corrente próxima significa que o consumidor tem um ganho também, pois o preço pago corresponde geralmente, aproximadamente, àquele praticado pela economia convencional. E a qualidade da alimentação e dos bens é bem melhor.
O outro aspecto chave é o respeito sistemático das Convenções da Organização Internacional do Trabalho (OIT), o qual garante condições de trabalho decentes para todos os produtores. E quando as pessoas têm salários decentes, a obrigação de tomar o caminho perigoso da migração muitas vezes é descartada. Isto é mais verdadeiro ainda quando a questão da soberania alimentar é colocado no cerne da política governamental de alguns países como o Mali. Se levarmos em conta todos estes aspectos em nossa cesta de frutas e de legumes da semana, isto parece ser uma escola razoável para equilibrar algumas bananas provenientes do Comércio Justo (selo carbono forte, mas Comércio Justo) com um saco de maças “orgânicas” do produtor local (nossos agricultores “orgânicos” poderão assim sobreviver)…! E aí estão elementos chave que asseguram o começo de uma verdadeira economia loca, quer seja perto de nossa casa ou em outro lugar, uma alternativa viável à situação de crises.
Políticas de compras públicas: um lugar para a economia solidária?
Na Europa, as entidades públicas dispõem também do poder de realizar suas compras na melhor relação qualidade/preço, ou então de motivá-las conforme critérios sociais e sociopolíticos. Para quantias modestas, a assinatura de contratos pode ser feita sem recorrer à licitação pública. Para compras importantes em que os procedimentos de licitação pública são impostos, os termos de compromisso podem definir cláusulas sociais como a integração dos trabalhadores desfavorecidos e/ou cláusulas ambientais. A Itália é o primeiro país a ter introduzido a dimensão social das compras públicas em 1991, reservando certos mercados públicos às cooperativas sociais. Mas esta lei teve que ser reexaminada em decorrência de objeções da Comissão. Pois é no âmbito da legislação europeia que o debate se desenvolve hoje. Na prática, a introdução de critérios sociais nos contratos públicos não é ainda uma prática comum.
Tomemos o exemplo da França. Hoje é fato corriqueiro ver as cantinas escolares abastecerem-se em produtos orgânicos locais (melhor assim!). A introdução de outros produtos é mais recente. O exemplo da cidade de Nantes ilustra bem que se pode ir mais além. As licitações públicas para as fardas dos serviços municipais contêm cláusulas específicas para favorecer a utilização de têxteis provenientes do Comércio Justo (especialmente o algodão orgânico justo). A dificuldade à qual a cidade se vê confrontada é que a demanda supera a possibilidade dos fornecedores. Dito isto, a demanda pode estimular o mercado. Pode-se esperar que uma iniciativa voluntária do setor público encoraje seu desenvolvimento. Outro campo chave é a compra de papel reciclado.
Duas variáveis culturais marcaram as discussões sobre esse assunto quando da reunião mencionada acima. A primeira é que a compra de bens e de serviços na França apresenta uma tendência a acontecer de forma hierárquica. Esta compra, sendo muitas vezes considerada como um mecanismo de apoio, permite a regiões, cidades ou países da Zona de Solidariedade Prioritária (ZSP) de cooperação descentralizada da França (muitas vezes suas ex-colônias), de serem irmanadas no plano institucional e de ter um apoio financeiro para projetos de desenvolvimento local. Por outro lado, diversas associações, das quais algumas de origem religiosa, intervêm igualmente para favorecer as comunidades do Sul. No entanto, no Reino Unido, é antes o contrário que acontece. A maioria do tempo a iniciativa desta ação é realizada pela sociedade civil (muitas vezes incluindo associações religiosas) ou por uma comunidade local. Muitas vezes, é necessário exercer pressões consideráveis sobre as instituições e as autoridades locais para obter um apoio para os projetos. Em todo caso, as Associações da sociedade civil desempenham um papel de impulsão necessário numa abordagem ascendente rica de uma alternativa econômica.
Desafios para a generalização da venda dos bens e serviços da economia solidária.
Outra reflexão concerne o conceito de risco na compra de bens e dos serviços provenientes da economia alternativa, e isto mesmo nos movimentos alternativos. O Comércio Justo e a alimentação orgânica são produtos claramente identificados, quer sejam oficialmente certificados ou não, o que constitui outro debate. Alguns produtos e serviços são agora aceitos pelo comprador médio e por muitas empresas igualmente. Linux, versus Microsoft é uma boa ilustração disto. Um a pessoa que opta pela compra do sistema Linux sabe que não corre “risco desconsiderado”. Mas resistências permanecem na organização das grandes manifestações mundiais altermundialistas. Por exemplo, encontra-se muitas vezes a recusa de trabalhar com os sistemas alternativos de interpretação e as redes de intérpretes voluntários são às vezes percebidos como carecendo de fiabilidade, mesmo se o contrário foi amplamente demonstrado e no quesito material e no quesito humano. Um exemplo infeliz é o caso do Fórum Social Mundial de Belém. O que reduziu consideravelmente o número de atividades com interpretação assim como a possibilidade dos participantes de se expressarem na língua de sua escolha.
Será que não é o temor dos compradores que a prestação para “seu acontecimento” – momento único para eles – não esteja à altura, que estaria subjacente a tais decisões? Mas se cada um não desenvolve sua capacidade de tomar riscos, como começar verdadeiros processos de mudança e instalar a confiança? Posner e Scmidt em 1984 realizaram um estudo sério sobre os fatores que influenciam o comportamento ético e as escolas dos gestores. Os resultados mostram a importância da decisão dos superiores hierárquicos como fator de exemplaridade. O que quer dizer, por extrapolação, que o papel das autoridades locais nas suas escolhas pode ter um impacto enorme em termos de emulação e de exemplaridade. Os primeiros resultados do programa dos Territórios do Comércio Justo e o nível de conscientização que isto já provocou o mostram bem. Seria certamente o mesmo para a escolha de equipamentos e serviços alternativos com um pouco mais de esforços da parte dos compradores.
Para concluir
Os desafios são importantes para que a economia social e solidária possa se desenvolver plenamente e continuar seu caminho de construção de uma economia mais justa e solidária. É por uma abordagem holística que soluções alternativas poderão ser instaladas no longo prazo para resolver as crises múltiplas que existem atualmente. Estas soluções devem ser instaladas em nível local como internacional, estabelecendo o elo entre produtos e padrões da OIT, cláusulas éticas, preços justos, soberania alimentar e relações sustentáveis. Isto exige ao mesmo tempo abertura e uma vontade coletiva de mudar, de tomar riscos e de explorar alternativas.
economía social, economía solidaria
Neste número do Boletim Internacional de Desenvolvimento Local Sustentável, Judith Hitchman nos comunica diversas reflexões sobre o desenvolvimento da economia solidaria especialmente no contexto europeu: a inclusão de produtos do comércio justo ou da agricultura orgânica nas políticas de compras das administrações do estado, mas igualmente das grandes instituições como as universidades, ou grandes grupos da indústria ou do comércio. A problemática entra na atualidade de vários países atualmente.
Assim, como foi relatado no precedente número, o movimento no Brasil reivindica, que a lei da merenda escolar brasileira, garanta que pelo menos 30% desta alimentação seja comprada em iniciativas locais de agricultura orgânica e de Economia Solidária. Sempre no mesmo contexto, o RIPESS propõe lançar uma campanha mundial para as compras públicas e para um consumo ético e responsável de bens e serviços.
O artigo de Judith Hitchman apresenta um resumo concreto dos desafios que se colocam para conseguir isto na França e no Reino Unido mais especialmente. Mas, como o artigo o menciona, existem também numerosas iniciativas em outros lugares. A título de exemplo, Yvon Poirier conhece duas iniciativas da rede dos Centros de crianças pequenas do Quebec que é o equivalente das creches. Por um lado, um grande número destes Centros realiza compras de produtos alimentares orgânicos junto aos produtores locais. O que permite começar a sensibilização dos jovens desde a idade pré-escolar para a alimentação sadia e de manter seus pais informados. Por outro lado, estes Centros montaram uma cooperativa comum para a compra do conjunto de seus bens e serviços.
Tradução em português: Michel Colin
Este artigo está também disponível em inglês, espanhol e francês.
Este artigo está disponível no blog: Boletim Internacional de Desenvolvimento Local Sustentável.