"...Quando comecei a alfabetizar, tinha 16 anos. No local em que eu moro - que é uma área de ocupação de terra urbana - tinha cerca de 600 crianças precisando aprender a ler e escrever. Eu não sabia nada sobre como se alfabetizava, e a saída que encontrei foi fazer meu trabalho sem reproduzir o que eu não gostava e que haviam feito comigo, quando aprendi a ler. Como fazia parte de um grupo, onde haviam professoras formadas, tinha a oportunidade de ouvir como elas faziam. Lembro que, muitas vezes, discordava do encaminhamento que elas davam e planejava minhas atividades a meu modo. Só muito tempo depois é que fui ter conhecimento das muitas teorias de alfabetização existentes." (trecho do depoimento de uma ex-professora comunitária de um município da periferia do Rio de Janeiro)
Quando ouvi esse depoimento, recentemente, logo pensei em preparar uma ficha, onde eu pudesse compartilhar com os integrantes do BAM as reflexões que me foram suscitadas pelo depoimento. Minha expectativa é poder trocar opiniões com os diversos leitores (entre eles, a educadora que me contou sua história). Gostaria que, caso se sintam provocados pelas idéias expostas nessa ficha, escrevam e façam circular suas reações nos próximos números do BAM. Estou apostando que esse intercâmbio pode gerar um debate interessante sobre a questão da formação do professor/alfabetizador.
À primeira vista, o tema que se destaca no depoimento - a auto formação - não parece ser um assunto que provoque muitas reflexões ou ajudem a responder ao problema da qualificação dos professores: a necessidade mais premente da educação do país nos dias de hoje. No entanto, ao examinar a trajetória percorrida por essa pessoa que, diante da necessidade da sua comunidade, teve que se improvisar como alfabetizadora de crianças, descubro a atualidade e a urgência de pensar sobre essa prática. E, ao fazer isto, lembro do universo das experiências de educação popular que, no decorrer das últimas décadas, formou muitos professores/alfabetizadores no Brasil e que precisa ser considerado no debate sobre a melhoria da qualidade da educação a ser oferecida pelo poder público.
A inserçãoo no movimento comunitário é o primeiro elemento que salta aos olhos na experiência vivida pela educadora em questão. A existência de um grupo, no qual ela se apóia para responder a uma demanda da realidade social à sua volta, é outro ponto que merece ser considerado. Todos esses elementos do contexto onde a experiência foi vivida são importantes para situar a intensidade do envolvimento que a experiência exigiu. São dados que, infelizmente, estão cada vez mais distantes da vida daqueles que se dedicam à educação pública em nosso país.
Mas, é no exercício e ampliação da autonomia dessa professora que me parece estar o aspecto mais importante a ser refletido, quando o tema é autoformação. Em relação a esse assunto as perguntas que me vêm à cabeça parecem-me um tanto heréticas. Mas, como diz um amigo meu, as heresias, ao contrário do que se pensa, são saudáveis. Exercitá-las é sinal da coragem de cometer erros. E, acreditando que o erro pode ser caminho para a verdade passo, então, às perguntas e às "pensações" sobre elas.
Até que ponto a apropriação/aplicação do conhecimento teórico sistematizado sobre um assunto - como a alfabetização - é pré condição para o exercício de uma prática nessa área? Em que medida a exigência do domínio desse conhecimento dá espaço para a sobrevivência/desenvolvimento da sabedoria - que é gestada na prática - indicador mais expressivo do exercício da autonomia?
Como o espaço da ficha é pequeno para alinhar muitas questões, fico por aqui. Acho que essas duas são mais do que suficientes para dar um pontapé inicial num debate que, acredito, tem tudo para prosperar. Vamos pois às "pensações".
Antes de tudo, é preciso que fique claro que ao formular essas questões não estou me alinhando numa posição obscurantista, espontaneísta ou qualquer coisa parecida. O que quero salientar é que sem a valorização, no processo de formação, daquilo que o professor/alfabetizador cria no seu processo de trabalho (sua auto formação), o conhecimento teórico disponível adquire o estatuto de regra a ser aplicada na prática. E assim utilizado ele pouco vai servir para desenvolver a necessária autonomia de pensamento que gera sabedoria que, por sua vez, contribui para a formulação/reformulação de teorias.
Enfim, o conhecimento já testado e experimentado por outros não pode ser uma camisa de força do professor/alfabetizador. Se assim for o resultado é a reprodução e não a recriação do conhecimento. Acredito que a flexibilização da pauta de formação - onde a prática passe a ser o principal elemento que demanda o indispensável conhecimento teórico - seria o caminho a ser perseguido na busca da superação do nó górdio da melhoria da qualidade da educação em nosso país - o professor qualificado para educar.
self teaching, autonomy, popular education, education
, Brazil, Rio de Janeiro
Estimular o registro e a sistematização de experiências pedagógicas
Rute faz parte da equipe do SAPÉ e integra os Coletivos de Educadores de Jovens e Adultos de Pernambuco e do Rio de Janeiro. Também faz parte da equipe do Boletim de interligação do Coletivo Rio.
Através do insentivo à produção e leitura de fichas de capitalização de experiências pedagógicas, a rede BAM pretende favorecer a um processo de formação continuada junto a coletivos de educadores de jovens e adultos (hoje, existentes nos estados do Rio de Janeiro e Pernambuco). Está apoiado numa metodologia que valoriza a autoria e promove a interação entre educadores de diferentes contextos.
Original text
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