introdução
Nesse artigo discute-se a atual lei de sementes brasileira em relação ao uso das sementes crioulas. A partir da exposição de experiências do Núcleo de Estudos da Agrobiodiversidade (NEABio) da Universidade Federal de Santa Catarina, discuti-se a criação de um novo marco legal para uma lei de sementes para a agricultura familiar.
A atual legislação de sementes
A produção e a comercialização de sementes no Brasil são reguladas basicamente por duas leis: a Lei de Sementes e Mudas (Lei 10.711/03) e a Lei de Proteção de Cultivares (Lei 9.456/97).
A primeira lei objetiva garantir a identidade e a qualidade do material de multiplicação e de reprodução vegetal produzido, comercializado e utilizado em todo o território nacional. A segunda institui o direito a proteção (propriedade intelectual) sobre cultivares, regulamentando a utilização de plantas e protegendo o direito dos seus obtentores.
A lei n° 10.771, de 05 de agosto de 2003, conhecida como “nova lei de sementes e mudas” apresenta diversos aspectos de reconhecimento das “sementes crioulas”. Embora a versão original submetida ao Congresso Nacional não previsse nenhuma abertura legal para o emprego das variedades crioulas nos programas governamentais, os movimentos sociais e as ONGs, mobilizadas em torno da Articulação Nacional da Agroecologia (ANA), conseguiram influenciar o conteúdo da legislação, o que incluiu, pela primeira vez, o reconhecimento oficial dessas sementes, permitindo sua produção, comércio e uso.
No Art. 2º, inciso XVI, da lei no 10.771, as cultivares locais, tradicionais ou crioulas são reconhecidas como sendo “variedade desenvolvida, adaptada ou produzida por agricultores familiares, assentados da reforma agrária ou indígenas, com características fenotípicas bem determinadas e reconhecidas pelas respectivas comunidades e que, a critério do MAPA, considerados também os descritores socioculturais e ambientais, não se caracterizam como substancialmente semelhantes às cultivares comerciais”.
No Art. 8º, § 3º, é estabelecido que “ficam isentos da inscrição no Renasem os agricultores familiares, os assentados da reforma agrária e os indígenas que multipliquem sementes ou mudas para distribuição, troca ou comercialização entre si”.
Os Artigos 11 e 48 estabelecem respectivamente, que “as variedades crioulas são isentas da inscrição no Registro Nacional de Cultivares (RNC)” e que, é proibida a restrição à inclusão de sementes e mudas em programas de financiamento ou programas públicos de distribuição ou troca de sementes.
Entretanto, apesar de alguns avanços, há uma série de dificuldades a serem superadas pelos agricultores familiares, como os casos do Seguro da Agricultura Familiar, da comercialização de sementes crioulas pelas organizações de agricultores familiares e a iminência de uma nova lei de proteção de cultivares mais restritiva aos direitos de uso próprio de sementes e mudas (Projeto de Lei 2.327/2007 em discussão na Câmara de Deputados).
VARIEDADE CRIOULA NÃO PODE SER REGISTRADA
Um dos trabalhos realizados pelo NEABio envolveu a descrição das variedades crioulas de milho, com todos os descritores do Serviço Nacional de Proteção de Cultivares, embora o trabalho não fosse realizado com o objetivo de registrar esses materiais (trabalho não publicado). O objetivo foi apenas de caracterizá-los para que os agricultores utilizassem suas potencialidades (grãos para alimentação humana e animal, palha para artesanato e cigarros, matéria seca e fresca para silagem, uso medicinal, características para manejo: rendimento de grãos, reações a doenças e acamamento e quebra de colmo e outros). Como era esperado para um conjunto de variedades locais, os dados obtidos apresentaram grande variabilidade.
Em trabalhos realizados com feijão, por pesquisadores do NEABio, também verificaram que as variedades crioulas de feijão apresentaram grande variabilidade. Em variedades crioulas de feijão mantidas por muitos anos pelos agricultores, os autores observaram comumente a existência de mais de um hábito e tipo de crescimento dentro da mesma variedade, além de diferentes tamanhos das sementes, cor do tegumento, brilho da semente e outras características com bastante variabilidade.
Por tudo isso, não se pode esperar uniformidade dentro de uma variedade crioula, mesmo sendo autógama. Como a uniformidade da variedade é exigência para que seja registrada no RNC e receba todos os benefícios das leis de sementes e econômicas, isso não será possível para a maioria das variedades crioulas em uso na agricultura familiar. Portanto, o atual marco regulatório de sementes crioulas e da agricultura familiar deve ser outro, diferente do atual e incluindo todas suas especificidades. Nossa opinião é clara nesse sentido: vamos tratar os diferentes como diferentes. Entendemos que as sementes crioulas devem atender a padrões mínimos em vários aspetos, como o percentual de germinação e outros que atendam a critérios de produção e comercialização. Mas isso não poderá ser atendido dentro dos marcos da agricultura industrial.
Análise sobre a atual legislação de sementes e mudas no Brasil e seus impactos sobre a agricultura familiar
Aqui serão ponderadas algumas das dificuldades para a atuação da agricultura familiar em relação à aplicabilidade da Lei 10.711 de 2003, com base na análise realizada por Londres (2006).
O primeiro aspecto a ser ponderado é sua formulação estar em grande parte baseada nas atividades das grandes empresas do setor agrícola-industrial e no mercado das “commodities”, o que gera alguns problemas quanto ao uso de sementes crioulas. Entre eles destacam-se:
1. A recusa de acesso ao seguro agrícola, pois o mesmo exige que as sementes utilizadas estejam cadastradas no Zoneamento Agrícola de Risco Climático do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), o que só é possível para cultivares registradas no Registro Nacional de Cultivares (RNC);
2. Em caso de optar pelo RNC, o formulário para registro pressupõe um alto nível de uniformidade genética que não existe nas variedades crioulas;
3. A proibição da comercialização de sementes produzidas por organização de agricultores da agricultura familiar;
É certo que grande parte dos problemas acima descritos não são de todo insolúveis, mas, demandará um esforço articulado entre as organizações da agricultura familiar, ONGs, Universidades, Centros de Pesquisa, etc. Por enquanto, fica bem claro que é preciso alguma perspicácia para ir atrás de brechas, encaixes, fragilidades e adequações da lei de sementes e mudas para a agricultura familiar, como tem ocorrido com o acesso ao seguro, autorizado na safra 2004/05 e 2005/06 mediante medida provisória.
Londres (2006) relata em seu trabalho divergências de entendimento e aplicabilidade da lei na esfera governamental e não governamental. A Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB). O ministério do Desenvolvimento Agrário (MDA) e o Grupo de Trabalho sobre Biodiversidade da ANA divergem do entendimento do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA) e o Conselho Monetário Nacional (CMN) quanto aos diversos aspectos da lei de sementes, principalmente entendendo que a agricultura familiar poderia ser favorecida na visão da CONAB e da ANA.
A CONAB, MDA, ANA e associações de agricultores, movimentos sociais, algumas instituições de pesquisa e pesquisadores individuais, comprometidos com a causa da agrobiodiversidade, biodiversidade e conhecimento tradicional esforçam-se para que haja adequações favoráveis aos agricultores familiares, como é o caso das medidas provisórias que liberam o Seguro Agrícola (PROAGRO) aos agricultores que usam sementes crioulas e a instituição do Cadastro Nacional de Entidades que desenvolvem trabalho reconhecido com resgate, manejo e/ou conservação de cultivares local, tradicional ou crioulo, junto a Secretaria da Agricultura Familiar do MDA (Portaria nº 58, de 18 de Julho de 2006).
Sugestão de novo marco regulador para a legislação de sementes e mudas para a agricultura familiar
Como já apontamos, é nosso entendimento que a agrobiodiverisidade utilizada pela agricultura familiar não é um “commoditie”. Ela é mais que um bem de consumo comum porque a ela está agregado conhecimento local, valores locais de várias ordens, necessidades locais, inclusive de sobrevivência, como foi mostrado nesse trabalho. Ela ajuda a frear o processo de degradação do conhecimento local causado pela agricultura convencional, com sua monocultura, agrotóxicos, erosão genética, em resumo, o que se convenciona chamar de agronegócio. Não existe SUSTENTABILIDADE na agricultura sem AGROBIODIVERSIDADE. Devemos observar o que vem acontecendo com alguns países europeus, onde algumas culturas importantes são dominadas por uma ou duas variedades. Cadê a sustentabilidade desse modelo? Não existe.
O marco para a nova legislação de sementes para agricultura familiar deverá ser baseada, pelo menos, nas seguintes premissas:
a.A vontade da agricultura familiar e toda sociedade organizada que a apóia;
b.A Convenção da Diversidade Biológica de 1992;
c.A IV Conferência Técnica Internacional para Recursos Genéticos de Plantas;
d.A III Conferência das Partes para a Convenção da Diversidade Biológica – Argentina, 1996.
Isso provavelmente seja suficiente para iniciar a discussão sobre o marco da legislação para sementes para a agricultura familiar, assentados da reforma agrária e indígenas.
Como ficou mostrado, as variedades crioulas não devem ser caracterizadas com o objetivo de ser registradas no Registro Nacional de Cultivares (RCN) devido a sua grande heterogeneidade, particularmente as espécies alógamas. O modelo desse sistema é para cultivares altamente homogêneas, onde um clone seria o modelo perfeito. O contrário ocorre para uma variedade crioula, onde uma lavoura de clone seria uma aberração e frustração certa. Para essas variedades é preciso adotar uma nova lógica de registro. Talvez um cadastro nacional de agrobiodiversidade.
Como fica a atual lei de sementes e mudas?
A atual lei sementes e mudas fica como está para o agronegócio. Apenas se retirariam todas as ressalvas, adequações e demais menções à agricultura familiar, criando marco legal específico para agricultores familiares que cultivam variedades locais e produzem suas próprias sementes.
legislação, semente, agricultura familiar
, Brasil
Este artigo faz parte de capítulo do livro Kit Diversidade: Estratégias para a Segurança Alimentar e Valorização das Sementes Locais. Organizado por Adriano Canci, Antônio Carlos Alves e Clístenes Antônio Guadagnin (2010). Editora Gráfica McLee - São Miguel do Oeste-SC- Brasil