Adriano Canci, Nicole Rodrigues Vicente, Alfredo Celso Fantini, Antônio Carlos Alves
07 / 2010
A agrobiodiversidade é produto da inter-relação da atividade humana com o meio ambiente numa variedade de condições ecológicas e principalmente de sistemas culturais. A grande diversidade de espécies, variedades e populações locais de plantas foram domesticados através de um processo milenar, com objetivo de assegurar a disponibilidade de alimento para garantir a sobrevivência das populações, mas também para reduzir a penosa tarefa diária da coleta.
Na região oeste do estado de Santa Catarina, os agricultores têm uma grande intimidade com o meio que interagem, principalmente no manejo de espécies utilizadas para a sua alimentação. A capacidade desses agricultores de manter e melhorar variedades locais de plantas como o milho, por exemplo, é amplamente reconhecida. No sistema agrícola tradicional da região, o abastecimento comunitário e as trocas de sementes são fundamentais para aprimorar as variedades de cultivos que os agricultores já possuem, para a adoção de novas variedades, mas principalmente para garantir a continuidade de produção independente de recursos externos. Na agricultura tradicional, o acesso à agrobiodiversidade, é vital para garantir a soberania alimentar e o desenvolvimento sustentável das comunidades rurais. Mas esse processo vem sendo erodido.
Nesse trabalho, é apresentado o resultado de uma avaliação realizada para verificar a eficácia de um projeto para promoção da alimentação de auto-consumo, realizado pelo Projeto Microbacias-2, investigando principalmente o grau de satisfação das famílias agricultoras com o projeto.
O kit diversidade foi inicialmente implantado nas microbacias Rio Flores e Ouro Verde. Ele representa uma estratégia para atender às demandas levantadas pelas famílias agricultoras nos diagnósticos participativos realizados em 2005 nas comunidades: produção de alimentos para consumo na propriedade, produção de sementes próprias, diminuição do uso de agroquímicos visando melhorar as suas condições de saúde e renda.
O processo de avaliação foi realizado junto às comunidades de Lageado Ouro Verde e Rio Flores, esta última incluindo as Linhas Tigre, São Roque e Perondi. Inicialmente, os facilitadores do projeto traçaram as linhas gerais sobre as informações de interesse para avaliar o trabalho desenvolvido junto às Associações de Desenvolvimento das Microbacias. Foi elaborado um questionário preliminar, que posteriormente incorporou as perguntas sugeridas pelas famílias locais em oficinas participativas.
O levantamento de dados foi realizado através de entrevista semi-estruturada, realizada em cada comunidade. Através de sorteio, foram selecionadas 56 famílias para serem entrevistadas em cada microbacia. Esse número é correspondente a uma margem de erro de 10% nos resultados, segundo o método sugerido por Barbetta (2006). Foram realizadas entrevistas semi-estruturadas (Geilfus, 1996) na própria residência de cada família, buscando a participação de todos os seus membros. O diálogo permitiu a obtenção de uma grande diversidade de opiniões, declarações e dados interessantes do ponto de vista da realidade local, importantes para a avaliação do kit.
O que revelou a avaliação
O primeiro aspecto do resultado da avaliação do kit foi a sua efetividade no estímulo das famílias a produzirem alimentos para o autoconsumo e ao resgate da produção própria de sementes. Os resultados foram agrupados por tópicos que constituíram perguntas-chaves das entrevistas.
1. Espécies plantadas, motivo pelo qual as plantaram e espécies eleitas como preferidas
De maneira geral, houve boa aceitação das espécies recebidas no Kit nas duas comunidades; somente uma pequena parte das famílias não plantou as sementes recebidas. Algumas espécies, como a ervilha, foram plantadas por mais de 90% das famílias, como observado na microbacia Ouro Verde. Mesmo a espécie com menor resultado, a fava, foi plantada por mais de 60% das famílias.
O principal motivo mencionado pelas famílias para terem plantado as sementes do kit foi a vontade de experimentar as novas variedades. O fato revela o espírito inovador e a curiosidade dos agricultores. Demonstra, também, a profunda relação das famílias agricultoras com o seu meio, e a sua permanente observação do resultado do seu trabalho.
Um significativo número de agricultores plantou as sementes com o objetivo de reproduzi-las, possibilitando a continuidade do plantio dessas variedades crioulas. Houve, ainda, um bom número de famílias que levou em consideração o aspecto econômico do plantio das espécies recebidas no kit, visto que não precisaram comprar as sementes nem os alimentos produzidos.
Acima de tudo, ficou evidente a efetividade do projeto para estimular as famílias agricultoras a produzirem o seu próprio alimento. O kit agora é reconhecido pelas famílias agricultoras como um importante instrumento para promover a soberania alimentar, como sugere a seguinte declaração de um agricultor: “se o mercado te falta tu passas fome, tem que plantar e ter para o gasto”.
Os resultados da avaliação do kit revelaram o alcance social do projeto, que pode mudar significativamente a qualidade de vida de muitas famílias através da melhoria da sua alimentação. A produção de alimento mais saudável foi mencionada por muitas famílias, que têm a exata noção de que as variedades crioulas recebidas no Kit são menos exigentes em adubo e mais resistentes às doenças e insetos.
Outro aspecto interessante lembrado pelas famílias foi a intenção de partilhar sementes com os vizinhos e familiares, prática que está na raiz do processo de conservação da biodiversidade de plantas úteis na agricultura. Demonstra, também, o espírito de coletividade das comunidades, um importante ingrediente da sua organização como movimento de grupo.
Nas entrevistas, também foram levantadas informações sobre as principais espécies que agradaram às famílias. Na microbacia Rio Flores, 20 % das famílias declararam que ter gostado de todas as espécies. Mas, o arroz, feijão e milho foram as espécies apontadas pelo maior número de famílias como as preferidas, resultado já esperado pela sua importância na dieta.
A preferência por outras espécies sugere o potencial do Kit para resgatar o hábito de plantar e consumir espécies abandonadas pelas famílias e para a introdução de novas espécies no cardápio dessas famílias, aumentando a diversidade de alimentos à sua mesa.
2. Necessidade de compra de alimentos após a implantação do kit e tempo que as famílias não plantavam mais as espécies recebidas
Um grande desafio do projeto era reduzir o número de famílias dependentes do mercado em relação aos alimentos básicos, fato revelado no diagnóstico realizado por Guadagnim et al. (2007). Aquele estudo apontou que 75% das famílias agricultoras do município não mais plantavam o próprio arroz que consumiam e 50% não mais plantavam o feijão.
A avaliação mostrou que, em média, 42% das famílias ainda recorreram ao mercado para comprar arroz. No caso do feijão, a situação é ainda mais positiva: 23% das famílias da microbacia Ouro verde e somente 8% das famílias em Rio Flores compraram esse alimento no mercado.
Os resultados sugerem um significativo avanço em relação à situação apontada por Guadagnin et al. (2007). Entretanto, revelam também que há espaço para a continuidade do projeto, no seu intento de promover a soberania alimentar das famílias agricultoras.
Algumas razões mencionadas pelas famílias para a aquisição de alimentos no mercado foram: perda de sementes ao longo do tempo, principalmente pela estiagem prolongada por três anos consecutivos; intenso trabalho de manutenção requerido pela lavoura e ausência de unidade de beneficiamento próxima à comunidade.
Outro motivo declarado pelas famílias para a compra de alimentos fora do estabelecimento foi a falta de mão-de-obra em casa, pois os filhos estão migrando para as cidades. Geralmente, este fator tem maior impacto nas famílias onde o marido é diarista e trabalha a maior parte do tempo fora do estabelecimento, e se agrava quando a esposa tem problemas de saúde e não pode trabalhar na roça, que atualmente é caso freqüente.
Foi verificado também, o tempo em que as famílias deixaram de plantar as espécies que agora foram incluídas no kit. A ervilha e a fava foram identificadas como as principais espécies que deixaram de ser plantadas ou nunca foram cultivadas pelas famílias.
Com relação à ervilha e à fava, as famílias declararam a perda da variedade e da semente como principal motivo pela conseqüente perda do costume de cultivar a espécie. Nas entrevistas, estas espécies se destacaram nos comentários relativos à satisfação, tanto pela qualidade da produção quanto pelos múltiplos usos na alimentação. Estes resultados corroboram a efetividade do kit como estratégia para resgatar hábitos alimentares e diversificar a dieta das famílias agricultoras.
Com relação ao milho, o número de famílias que deixaram de plantar esta cultura há mais de 20 anos é bem menor: nove e seis nas microbacias Ouro Verde e Rio Flores, respectivamente. Apesar do número pequeno de famílias que deixou de plantar milho o resultado é significativo tendo em vista a importância socioeconômica e cultural da espécie.
Outro resultado importante é que em muitos casos as famílias deixaram de plantar espécies importantes ao longos dos últimos anos, como o arroz. Na microbacia Ouro Verde, por exemplo, sete famílias deixaram de plantar arroz nos últimos cinco anos, três entre 5 e 10 anos atrás, duas entre 10 e 20 anos atrás, e uma há mais de 20 anos. Isso significa que o abandono dos cultivos vinha sendo um processo continuado e progressivo e justifica a preocupação dos organizadores do projeto kit diversidade.
3. Opiniões das famílias sobre a idéia do trabalho kit diversidade: vantagens e mudanças ocorridas após o seu recebimento
Somente um pequeno número de famílias (4% do total de famílias de umas das microbacias) declarou insatisfação com o projeto. Evidentemente, esse resultado não pode ser desprezado pois sugere que ainda há aspectos a serem melhorados no projeto. Mas, também não deixa dúvida que a satisfação com o kit é generalizada.
Um dos bons resultados que podem ser atribuídos à iniciativa do kit foi o estímulo e incentivo que o mesmo promoveu nas famílias para que produzam o seu próprio alimento.
A vantagem trazida pelo projeto mais comentada pelas famílias entrevistadas foi o incentivo à produção para autoconsumo incluindo a produção de alimentos saudáveis (36% das famílias de Ouro Verde e 39% de Rio Flores). Esse resultado está diretamente relacionado a um dos principais objetivos do projeto.
Aquisição, troca ou produção de sementes foram outros aspectos mencionados, que complementam o resultado positivo do projeto apontado pelas manifestações anteriores.
Enfim, os resultados aqui apresentados sugerem que o projeto kit diversidade poder ser considerado um sucesso. A satisfação dos agricultores com o projeto foi, acima de tudo, encorajadora para os organizadores.
Conclusão
O estudo aqui relatado revelou que houve forte adesão dos agricultores ao projeto kit diversidade, bem como a sua satisfação em relação ao projeto. Podemos concluir também que o projeto atingiu um dos seus principais objetivos: diminuir a compra de alimentos básicos no mercado.
Entretanto, outros resultados somaram para atestar o sucesso do projeto. Muitas famílias voltaram a cultivar alimentos que tinham deixado de fazê-lo em muitos casos há mais de 20 anos. Desse modo, o trabalho resgatou hábitos alimentares saudáveis que haviam sido perdidos, como o consumo da fava e da ervilha.
Outra evidência a favor do projeto foi o resgate da autoestima das famílias agricultoras. Esse resultado pôde ser constatado já nas oficinas realizadas para a elaboração do processo de avaliação, e foram fortemente confirmadas pelas manifestações das famílias durante as entrevistas.
Esse fato sugere, portanto, que também o incentivo à volta ao hábito da produção própria do alimento e da semente deve necessariamente ser um processo de longo prazo. Indica, portanto, a necessidade da continuidade do projeto, e o aprofundamento da avaliação periódica de forma participativa.
Acima de tudo, são necessárias políticas públicas para melhorar a qualidade de vida das famílias no campo, fortalecendo o seu vínculo com a terra e tornando-as menos vulneráveis às crises que levam à migração para as cidades. Pois, manejar a agrobiodiversidade também é bastante trabalhoso e os agricultores estão sentido a perda de seus filhos do meio rural e da atividade da agricultura familiar.
biodiversidade, agricultura, semente
, Brasil
Este artigo faz parte de capítulo do livro Kit Diversidade: Estratégias para a Segurança Alimentar e Valorização das Sementes Locais. Organizado por Adriano Canci, Antônio Carlos Alves e Clístenes Antônio Guadagnin (2010). Editora Gráfica McLee - São Miguel do Oeste-SC- Brasil