Os governos na Bolívia, a partir de 1985, implementaram reformas econômicas neoliberais (1) que aprofundaram os graus de pobreza e migração do campo para a cidade. O INE, Instituto Nacional de Estatística da Bolívia registra, já em 2005, 65,98% de população na área urbana e 34,02% na área rural. As cidades denominadas do Eixo Central da Bolívia – La Paz, Santa Cruz e Cochabamba – concentram mais de 50% da população do país. O crescimento demográfico destas cidades piorou os graus de vulnerabilidade social, econômica, política e espacial dos habitantes.
Nesse panorama destacam-se experiências e processos desenvolvidos por instituições não governamentais, organizações e ativistas dos direitos humanos, articuladas na Rede Nacional de Assentamentos Humanos RENASEH (2), as quais conseguiram incluir na nova Constituição Política do estado o direito à moradia, estabelecendo bases viáveis para uma reforma urbana no país.
A desatenção à terra urbanizável
Na Bolívia aconteceram duas Reformas Agrárias (3), que não implementaram medidas para a atenção à terra urbanizável. Os poucos avanços na legislação urbana aconteceram de maneira complementar à administração da terra agrícola. No ano de 1995, a Lei de Participação Popular estabeleceu uma nova visão de distribuição e administração territorial descentralizada, de modo que são criadas Organizações Territoriais de Base no quadro dos distritos municipais, outorgando novas atribuições ao município, como o planejamento de seu território. Com esta lei, aprofunda-se com grande acerto a descentralização e autonomia dos municípios, os quais mais adiante vão preencher o vazio legal urbano implementando normas municipais de administração do solo, embora de maneira dispersa e não integrada, a um sistema nacional urbano inexistente.
Do direito à moradia ao direito à cidade: nasce o Comitê Impulsionador do Direito à Cidade
As lutas pelo direito à moradia, acesso seguro ao solo e a uma melhor qualidade de vida em Cochabamba foram assumidas em diferentes facetas e perspectivas. Até o ano de 2005, a Comunidade Maria Auxiliadora mantinha uma luta frontal pelo reconhecimento da propriedade coletiva da terra e da moradia, ao par com as cooperativas de habitação por ajuda mútua, articulados com a Fundação Pró-hábital e Procasha. Por outro lado, profissionais independentes, grupos de voluntários pela moradia impulsionados pelo Hábitat para a Humanidade, junto a milhares de famílias necessitadas de habitação, faziam parte de uma nova consciência crítica sobre a realidade sócio-habitacional no contexto urbano.
Cochabamba, a capital da Guerra da Água, continuava em sua encruzilhada, herdada após a expulsão da Transnacional Águas do Tunari, de manter a gestão pública da água por meio da empresa privada ou com a gestão comunitária, recuperando os modelos dos sistemas comunitários de água da zona sul da cidade. A problemática do tratamento sustentável do lixo, a crescente insegurança da cidadania e os permanentes conflitos sociais entre linhas de transporte público sindical e livre4, expõem grandes fragilidades na gestão da cidade de Cochabamba.
No ano de 2005, declarado pelas Nações Unidas Ano Internacional das Cidades, a Fundação Pró-hábitat reúne a grande parte destes atores junto aos afiliados a RENASEH em torno da feira do Dia Mundial do Hábitat. A riqueza do intercâmbio e articulação do evento entre organizações e instituições, motivou a convocação da primeira reunião de instituições e pessoas interessadas na abordagem do direito à cidade. Assim nasce o Comitê Impulsionador do Estatuto da Cidade, denominado agora Comitê Impulsionador do Direito à Cidade. (5)
Processo desenvolvido pelo Comitê Impulsionador do Direito à Cidade em Cochabamba
Primeiros passos do Comitê Impulsionador do Direito à Cidade
O “Comitê Impulsionador do Direito à Cidade” iniciou seu processo com o nome de Comitê Impulsionador do Estatuto da Cidade, pois assumiu “A Lei do Estatuto da Cidade” do Brasil como documento modelo. Conclui-se sobre a necessidade de desenvolver uma análise da problemática urbana para construir e propor ferramentas técnicas e políticas que viabilizassem a verdadeira função social da propriedade a favor da gestão democrática da cidade de Cochabamba.
As cidades da Bolívia, sobretudo as do Eixo Central, possuem problemáticas urbanas similares, de modo que o Comitê determinou o início da elaboração de uma proposta de direito à cidade para Cochabamba, como experiência piloto que permitisse viabilizar uma reforma urbana na Bolívia.
A complexidade do problema e a proposta do Decálogo
Os problemas como a falta de acesso ao solo servido, à moradia adequada e à gestão institucional clientelista, excludente da cidade e a normativa urbana dispersa deram lugar ao desenvolvimento de longos debates, transformando a questão em algo bastante complexo. As causas e conseqüências destes problemas são resumidos a seguir.
• A imigração do campo e outras zonas oprimidas para a cidade, a qual não está planejada, geraram um crescimento ilimitado da mesma.
• Quando, no planejamento da cidade, não se leva em consideração a situação econômica, política, social e cultural de seus habitantes a conseqüência são os investimentos públicos bastante custosos ao estado e às famílias.
• Quando a forma de organizar uma cidade exclui as pessoas com menor capacidade econômica e influência política então se dá lugar ao clientelismo político.
• Quando se planeja a cidade a partir de uma visão tecnicista e economicista e não integralmente, permite-se a ocupação das áreas de preservação ambiental e agrícola, bem como a implantação de assentamentos humanos em áreas geograficamente perigosas.
Para facilitar a abordagem da complexidade do problema urbano, organizamse diferentes comissões, entre as quais se elaborou uma proposta de políticas e princípios para a cidade que deram lugar a um decálogo de princípios.
Decálogo de princípios para a cidade de Cochabamba
1. Cochabamba é uma cidade democrática, aberta, hospitaleira, social e espacialmente integrada.
2. Os direitos da coletividade são mais importantes que os direitos individuais.
3. O centro urbano híbrido e sem identidade deve ser renovado para fortalecer a identidade e o sentido de pertencimento.
4. Todos os distritos têm o direito de ser social e espacialmente integrados.
5. A Cancha (6) e seus arredores como coração econômico da cidade merecem o reconhecimento social e político da cidadania.
6. Os cidadãos são mais importantes que os automóveis.
7. Os espaços verdes são mais importantes que as vias.
8. Racionalizar o ciclo da água.
9. Moradias dignas para 49,37% dos habitantes que carecem de casa própria.
10. Uso do solo protegido, urbano e urbanizável.
Os eixos temáticos do direito à cidade para Cochabamba
Todas as cidades requerem uma visão e concepção própria sobre o direito à cidade; desta maneira, trabalhou-se com base em conteúdos e princípios da Carta Mundial pelo Direito à Cidade, o que deu lugar a um esquema básico de eixos temáticos para o desenvolvimento de grupos de análise e a elaboração de propostas.
Após longos debates, os eixos temáticos definidos a partir da grande quantidade de problemas da cidade foram os seguintes:
• Serviços básicos: água, esgoto, energia elétrica e coleta do lixo
Em Cochabamba, o acesso a serviços básicos ilustra as condições deploráveis de segregação social nas quais vivem mais de 100 mil pessoas da Zona Sul da cidade.
Somente 53% da população estão servidos com água encanada. Tão grave é a carência no serviço de esgoto que apenas 49,4% da população possuem tal serviço.
• Serviços sociais: educação, saúde, segurança da cidadania, estradas, equipamentos e infraestrutura, recreação e lazer.
A maioria destes serviços está concentrada nas zonas mais privilegiadas, reforçando as diferenças sócio-econômicas e de acesso a oportunidades entre as zonas norte e sul da cidade.
O padrão atual de espaços livres ou áreas verdes é inferior a 5 metros quadrados por habitante. Contudo, existe pouca consciência popular na manutenção e cuidado da infraestrutura pública, como parques, praças e jardins.
• Economia, produção e abastecimento: mercados e indústrias
Em Cochabamba, culturalmente, os mercados são os cenários mais importantes da cidade; tal o caso de “La Cancha” e os diferentes mercados denominados campesinos, os quais são os pontos estratégicos de relação entre o campo e a cidade. O funcionamento destes espaços incide diretamente nos sistemas viários, sistemas de comunicação, produção e abastecimento de Cochabamba que, por sua vez, carece de uma rede de mercados organizados que regulem e melhorem seu funcionamento.
• Solo e moradia
O crescimento urbano e seu ordenamento são de competência municipal desde o ano de 1995 com a Lei de Participação Popular. Contudo, não existem mecanismos municipais para a incorporação de novas terras ao uso urbano. As normas urbanísticas limitam-se a proibir a urbanização das terras potenciais denominadas áreas agrícolas e de proteção ambiental, sem reconhecer que muitas destas zonas já estão urbanizadas desde os anos sessenta. O morador migrante que deseja acessar um lote não pode fazê-lo por meio de um programa social público, nem através de um mercado formal de terras que acate as normas de urbanização, mas sim unicamente por meio do mercado informal.
• Políticas institucionais: gestão social, marco político, informação
As instituições administradoras das cidades são agora interpeladas pela necessidade de promover estratégias, políticas e instrumentos normativos que façam frente ao problema da exclusão social e segregação espacial. Implementouse um modelo de gestão descentralizado que não pôde incluir a grande maioria da população urbana nos processos de planejamento e gestão municipal. À margem, o acesso à informação pública é deficiente, limitando o desenvolvimento das capacidades civis fundamentais.
Proposta de lei urbanística de acesso ao solo
Até o momento, desenvolveu-se uma campanha de promoção, difusão, análise e debate do sentido e da necessidade de trabalhar o direito à cidade como um novo paradigma de construção de cidades mais justas e sustentáveis.
Em função da necessidade de compreender o sentido e os alcances conceituais e jurídicos do direito à cidade publicou-se material educativo a partir dos conteúdos da Carta Mundial do Direito à Cidade, com o qual se desenvolveu uma série de oficinas com organizações de base e instituições interessadas.
A expressão “direito à cidade” tem gerado discussões, uma vez que se relaciona indiretamente ao ressurgimento das identidades indígenas autoidentificadas com o rural e seu conflito com a discriminação histórica sofrida nos contextos urbanos, razão pela qual se foram utilizando denominações alternativas como “direito a um município digno”, “direito a um hábitat digno” ou “direito à cidade urbano rural”.
Uma equipe de profissionais de dentro do Comitê Impulsionador do Direito à Cidade realizou uma proposta de lei de acesso ao solo a partir das seguintes diretrizes jurídicas:
a) Reconfiguração da concepção do direito à propriedade urbana
• Delimitação do direito à propriedade urbana
• Função social da propriedade urbana
• Deveres e direitos de proprietários em situação de solo urbanizado.
b) Acesso ao solo
• Identificação de terrenos baldios mediante participação e controle dos
moradores locais.
• Reconceituação do termo “indenização justa” em casos de desapropriação
• Aquisição de solo para o Banco de Terras
• Regime de propriedade dos imóveis do Banco de Terras
c) Regularização dos assentamentos
• Regularização de assentamentos humanos com participação e controle social
• Usucapião coletivo especial
• Direito real de superfície
• Realocação dos assentamentos em áreas de risco
d) Disciplina urbanística
• Responsabilidade penal por loteamento e/ou desmembramento ilegal
Um novo marco jurídico apto para uma reforma urbana sustentável
Com a chegada de Evo Morales Ayma à Presidência da Bolívia, iniciou-se uma mudança profunda, que ainda continua, de refundação do país a partir da participação de todas as camadas, por meio da Assembleia Constituinte. Este momento é o resultado de uma luta constante do povo boliviano mobilizado desde a histórica “Marcha pelo Território e pela Dignidade” protagonizada pelos povos indígenas do oriente no ano de 1990, demanda reforçada com a Guerra da Água no ano 2000 e as mobilizações de fevereiro e outubro de 2003 (7). A Assembleia Constituinte foi uma prova bastante forte para medir as capacidades instaladas e os impactos alcançados de todos os atores sociais do país.
Ante a abertura do processo constituinte, a Fundação Pró-hábitat, junto a algumas afiliadas de RENASEH e grupos sociais aliados, iniciaram uma campanha massiva de lobbying, mobilização e incidência política para constitucionalizar o direito à moradia, apresentando uma proposta consensual. Esta foi a causa, a promoção e a defesa do processo da Assembleia Constituinte, rejeitado pelas camadas empresariais e abastadas do país. Realizaram-se mobilizações e concentrações em seis cidades capitais da Bolívia (8), participando dos encontros territoriais organizados pela Assembleia Constituinte com o fim de reunir todas as propostas em cada departamento (estado) da Bolívia. Entregaram-se abaixoassinados de apoio ao direito à moradia à Assembleia Constituinte, chegandose a apresentar e explicar para a mesma, através de várias comissões técnicas, pormenores da proposta. Como resultado de todo o desenvolvido, a Assembleia Constituinte convocou a Rede RENASEH a redigir o artigo final do direito à moradia adequada para nova institucionalidade da Bolívia.
A nova Constituição Política do estado boliviano reconhece o direito humano à moradia adequada junto a seus componentes no artigo 19, além de incluir a moradia como competência nacional, departamental, municipal e do povo originário (arts. 304, 299, 302, 298).
Até pouco tempo atrás o estado não reconhecia a propriedade coletiva da terra e, portanto, não a protegia. Era impossível desenvolver projetos de moradia comunitária ou cooperativa, de modo que somente eram possíveis projetos de propriedade individual. Agora, no entanto, reconhece-se e protege-se a segurança jurídica da posse da terra (art. 393) em sua modalidade individual, coletiva e comunitária.
Os serviços básicos não eram considerados entre os direitos humanos e, na realidade, ficavam mais suscetíveis a concessões a empresas privadas nacionais ou transnacionais. Agora se reconhece o direito à água potável, ao esgoto, a energia elétrica, ao gás residencial, as telecomunicações e ao transporte (art. 20), além de considerar-se o direito a um meio ambiente saudável, protegido e equilibrado (art. 33).
A terra e a moradia são bens submetidos às leis do mercado especulativo.
Atualmente, no entanto, o estado obriga-se a regular o mercado da terra (art. 396) e a destinar maiores recursos econômicos específicos para moradia (art. 321).
Neste novo cenário, estabelece-se como tarefa constitucional a participação da sociedade civil no desenho de políticas públicas de forma organizada (art. 241), isto é, a gestão democrática das cidades.
Com estas importantes inclusões, as bases para uma verdadeira reforma urbana na Bolívia estão estabelecidas. Agora estamos enfrentando a construção das autonomias em cada região do país, onde se incorporaram os princípios e a visão do direito à cidade. Neste sentido a Carta Mundial do Direito à cidade, as visões e princípios do Comitê Impulsionador do Direito à Cidade e a proposta de lei de acesso ao solo serão propostas importantes para todas as autonomias. Entre elas deve-se reconhecer que existem setores minoritários em desacordo com o processo de mudança e que buscarão obstaculizar este grande processo que é agora irrefreável.
O gigante adormecido despertou.
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