06 / 2008
DV – Como se tornou agente comunitária de saúde?
Fátima Andréia Nascimento – No Jardim Gramacho, já existia há 12 anos o programa Saúde na Família, só que não era profissão, era um trabalho voluntário. Em 2002, foi feita uma chamada. Bastava fazer a provinha, que foi bem básica, ser moradora, ter boa conduta e um bom relacionamento no bairro. Com o tempo, começaram as reivindicações, porque nós trabalhávamos e não tínhamos direito a férias, 13º, a nada. As mulheres mais velhas não ligavam muito pra isso, mas quando começou a entrar mulheres mais novas, passamos a brigar por nossos direitos. É claro que, ao lado das reivindicações, vem outro lado, o das exigências. Tivemos que estudar, nos capacitar, todas nós voltamos pra escola para fazer o Curso Técnico de Agente Comunitário de Saúde. É isso que estou fazendo agora. Existe uma discussão se esse trabalho vai ficar vinculado a qual governo, federal ou municipal, se seremos efetivadas pela CLT. Não pode ser concurso público, porque, para ser agente comunitário, tem que morar, necessariamente, no bairro, e um concurso público teria que abrir para mais pessoas. Enfim, enquanto isso tudo se resolve, estamos nos capacitando.
DV – O que mudou na sua vida a partir desse trabalho?
Fátima Andréia Nascimento – Mudou muito. Não tinha noção de muita coisa que agora estou aprendendo, principalmente sobre saúde e higiene. A gente aprende a conviver com as pessoas, a passar informações pra elas, o nosso trabalho tem um lado meio de psicologia. Nas visitas domiciliares, a idéia é verificar cartão de vacina, fazer palestras, às vezes só para aquela família, às vezes, em escolas. E também procurar descobrir problemas de saúde antes que eles se agravem, como nos casos de hipertensão. Mas a cada conversa, as pessoas não falam só sobre a saúde, falam das dificuldades, das mágoas. A gente vai fazer determinado levantamento e acaba descobrindo muito mais. Presenciamos muitos conflitos também, e não podemos interferir. No caso da juventude, é mais complicado. Às vezes, eles confidenciam pra nós situações que não contam para os próprios pais. Acho que, com esse trabalho, aprendo a entender melhor o ser humano e a julgar menos, é muito legal.
DV – Como é a sua casa?
Fátima Andréia Nascimento – Quando o pai das crianças foi embora, a casa já estava muito velha. Agora, meu namorado está fazendo um muro, não há como pagar pedreiro. Para fazer obra em casa, tenho que cercar o quintal primeiro. Moro em casa de fundos e o esgoto da casa da frente cai no meu quintal. A casa do lado colocou uma bica e agora está caindo água por trás da minha casa. Não quero discutir com os vizinhos, então vou delimitar o que é meu a partir do muro. Aí chegaremos a uma solução e poderei melhorar a casa. O banheiro está quase caindo, tive que tirar a caixa d’água.
DV – E o cotidiano da sua família?
Fátima Andréia Nascimento – Costumo acordar às 6 horas da manhã para fazer várias tarefas em casa antes de sair pra trabalhar. Felipe acorda às 5 horas pra ir pra escola, deixo o café pronto à noite ou faço cedinho. Costumo também fazer a comida de manhã, compro pão, lavo roupa, passo minha roupa pra ir trabalhar. Os outros dois estudam à tarde. Como meu trabalho é de casa em casa, lá na comunidade, às 12 horas, volto pra dar almoço pra eles. Patrick tem a tarefa de esquentar a comida. Alan enche os barris de água.
DV – Não tem água encanada?
Fátima Andréia Nascimento – Tem, mas, de quarta a domingo, não entra água da rua. Felipe fica com a tarefa de lavar o banheiro. Ele chega, almoça e depois vai pro curso, só volta quase 6 horas da tarde. Ele não ganha dinheiro, mas está aprendendo mecânica, é um treinamento de um ano, tem também um seguro de vida. A maioria dos meninos que faz esse curso consegue emprego. É uma oportunidade para o futuro.
DV – E os outros, ficam em casa sozinhos?
Fátima Andréia Nascimento – Os outros não estão fazendo nenhum curso no momento, mas estão precisando de explicadora. Eles ficam em casa de manhã e estudam à tarde. A minha rua é como se fosse um grande quintal, todo mundo se conhece desde pequeno. É difícil fazerem alguma coisa que eu não saiba, as pessoas sempre olham por eles, o bairro todo me conhece. Às vezes, Alan fica na casa de uma irmã da igreja.
DV – A família é evangélica?
Fátima Andréia Nascimento – Todos, menos Felipe. Mas não somos da mesma igreja. A minha é a Boas Novas, a do Patrick é a Pentecostal Restituição, às vezes, Alan vai também. Patrick começou primeiro, foi ele que me levou quando eu estava com problemas. Mas ali era mais um ponto de pregação e queria aprender a doutrina mesmo, por isso procurei outra igreja.
DV – O que fazem para se divertir?
Fátima Andréia Nascimento – A gente costumava ir ao cinema, só que fica muito caro. Consegui comprar um DVD e a gente aluga filmes. Meus filhos gostam de desenhos japoneses e de revistinhas, os mangás. Acho muito chato. Alan gosta de ir pro shopping, adora a escada rolante. Patrick gosta de sair pra comer fora, ir ao parque de diversão.
DV – Quando começou a participar do Programa Bolsa Família? Como usa esse dinheiro?
Fátima Andréia Nascimento – Há uns quatro anos, me inscrevi na escola das crianças. No mês passado, recebi R$ 97. Esse dinheiro serve pra muitas coisas, depende do momento em que chega. Certa vez, chegou um dia depois que acabou o gás, é claro, comprei outro botijão. Da outra vez, veio um dia antes do aniversário do Patrick, comprei um sapato pra ele. Às vezes, compro alguma coisa no mercado, às vezes, são meias pra escola ou a gente sai, lancha, vai ao parquinho. Não acho que esse dinheiro tenha que ser só pra alimentação. O governo não pode achar que nossa necessidade está só na alimentação. O que não faço é comprar a crédito contando com esse dinheiro, porque esses programas de governo de repente acabam, sem aviso.
DV – Conhece alguma história desse tipo?
Fátima Andréia Nascimento – Sim, algumas pessoas falam que perderam; outras que o valor mudou de repente. Prefiro não fazer dívida contando com esse dinheiro. Mas ajuda muito. Por exemplo, quando comprei a bicama dos meus filhos, isso só foi possível porque tinha mais esse dinheiro pra receber. Antes, dormíamos todos no chão.
DV – É fácil ou difícil cumprir as condicionalidades do programa?
Fátima Andréia Nascimento – Não acho difícil, não. Como agente comunitária de saúde, tenho obrigação de avisar para as pessoas do bairro que elas têm que ir ao posto para ver como está a saúde da criança, senão podem perder o benefício. A escola também avisa, coloca cartaz. Não há como ir de casa em casa avisar. No Jardim Gramacho, não acho que as pessoas tenham dificuldade para obter essas informações. E quando a gente fala em perder benefício, as pessoas se interessam, ficam mais espertas porque ninguém quer perder.
DV – Você conhece alguém que tentou entrar no programa e não conseguiu?
Fátima Andréia Nascimento – Já soube de alguns casos. Nessas situações, quando falam comigo, digo pra elas irem na Secretaria de Ação Social pra saber qual é a dificuldade. Agora, nesse período, por conta das eleições, não há como se inscrever mesmo, só depois das eleições é que vai reabrir.
DV –Tem alguma crítica ao programa?
Fátima Andréia Nascimento – Não tenho críticas, mas sugestões. Claro que gostaria que o benefício fosse maior. Outro ponto é que as crianças que recebem o Bolsa precisam estar em escola estadual ou municipal. Gostaria de poder mudá-las de escola, para uma escola em que realmente a gente sentisse segurança e, nesses casos, geralmente, é preciso pagar. Esse dinheiro poderia ser pra isso também. As pessoas, quando pensam no Bolsa Família, associam isso à alimentação, em adquirir alimentos. Mas, como diz a música: ‘A gente não quer só comida, a gente quer bebida, diversão e arte’. É por aí. O governo poderia ter pensado em outras formas, em vez de apenas dar um benefício, porque algumas famílias realmente se acostumam a isso, se acomodam, ficam na ‘profissão beneficiário’. As pessoas que estão desempregadas deveriam receber um formulário de preenchimento de vagas de emprego, entrar para um cadastro de empregos. Não que fosse tirar o benefício, a não ser quando necessário.
DV – Acha que, com o dinheiro, o governo deveria dar um incentivo à empregabilidade?
Fátima Andréia Nascimento – Sim. Da mesma forma, tem várias maneiras de gastar esse dinheiro, não necessariamente com comida. Os programas anteriores eram assim. Participei do Cheque-Cidadão, e o governo queria dizer o que deveríamos comprar. Claro que ninguém deve comprar cigarro e bebida com um benefício do governo, mas há outros itens necessários que, às vezes, não são pensados. Acho que os critérios deveriam mudar nesse sentido. Por exemplo, se a criança está mal na escola, a mãe não pode responder uma pesquisa dizendo que gasta aquele benefício com uma explicadora para o filho. É como se o governo estivesse pagando a população para continuar tudo do mesmo jeito.
DV – Como encara o recebimento desse benefício?
Fátima Andréia Nascimento – Acho que, nessa história, não tem ninguém bonzinho. Não sei exatamente como isso funciona, mas acho que o dinheiro que vem pra cá também é meu, é da população que paga seus impostos e, de alguma forma, volta pra nós.
DV – Se a sua vida mudasse, abririamão do Bolsa Família?
Fátima Andréia Nascimento – Sim, isso aconteceu quando recebia o Cheque-Cidadão. Arrumei um emprego, fui lá e devolvi, ninguém precisou falar nada pra mim. Na época em que comecei a receber, precisava muito mesmo, estava desempregada e o pai dos meninos também. Depois de um tempo, ele arrumou emprego e eu também, aí não precisávamos mais. Como fui abençoada, queria que outra pessoa fosse também, por isso, interrompi.
DV – Como seria o Brasil ideal?
Fátima Andréia Nascimento – O Brasil que eu sonho ainda não existe. Precisaria ter oportunidades iguais pra todos, em todos os sentidos, na saúde, na educação, no trabalho. Quando saio de onde moro e venho para o centro do Rio, percebo que o Brasil não é igual, e isso é assim desde sempre, desde antes de eu nascer. Não entendo isso. Por exemplo, se chego em um lugar e digo que moro em Caxias, agora isso diminuiu, mas as pessoas agem como se esse fosse o pior lugar, como se lá não tivesse também muitas pessoas bacanas, trabalhadoras. A gente trabalha pra construir um país que não nos reconhece como filhos verdadeiros. Não nos dão as mesmas oportunidades, as escolas públicas não preparam nossas crianças para serem, de fato, cidadãs. Preparam para servir somente em subempregos. As crianças, hoje, têm muita dificuldade de aprendizagem e, mesmo cometendo erros, passam de ano, parece que saber o português correto já não conta mais. Acho que cidadania é poder entrar em qualquer lugar de cabeça erguida, não é em todo lugar que somos bem-vistos.
DV – Já passou por situações de preconceito?
Fátima Andréia Nascimento – Sim, uma vez participei de um concurso de frases e ganhei um fim de semana em Porto Seguro, na Bahia. Estava muito feliz, fui com uma colega. Lembro que fui entregar a chave do quarto na recepção do hotel onde estávamos e tinha ali uma mulher bonita, bem-vestida. Quando ela me olhou, segurou a bolsa como se eu fosse roubá-la. Voltei para o quarto muito chateada. Acontece também de estar em shopping e perceber o segurança olhando. Este país é muito desigual nesse sentido. Às vezes, as pessoas reclamam das cotas. Eu não aprovo as cotas a longo prazo, mas nesse início, é superimportante. Ninguém vai dar oportunidade pra ninguém de graça, então, o negócio é invadir esses espaços, sim. Eles sempre falam da situação como se estivessem nos fazendo um favor, dizem que os cotistas ficam abaixo da média, eu não aceito isso.
DV – Que futuro sonha para seus filhos?
Fátima Andréia Nascimento – Sonho que eles possam estudar, entrar para uma faculdade, é o que meu filho mais velho quer, os mais novos ainda não pensam nisso. Sei que agora tem pré-vestibulares comunitários, isso pode ajudar. Gostaria que eles pudessem estar em pé de igualdade, fazer as provas, tirar boas notas, conseguir estar em lugares que, hoje, ainda não conseguem chegar. É muito difícil conquistar alguns espaços, tem pessoas que já nasceram pra ocupar esses espaços, estão predestinadas a isso. Gostaria que esse fosse o desejo da juventude de todos os bairros mais pobres, que os pais também fomentassem esse desejo nos filhos. Os pais, muitas vezes, não têm esse desejo, porque isso também não foi passado pra eles quando eram crianças, como aconteceu com meus próprios pais. Eles acham que não vale a pena, que é muito difícil tomar decisão, que não vai contribuir pra nada, que não vale a pena participar, que a palavra deles, a participação deles, não têm peso nenhum. Percebo isso onde moro, quando vamos fazer alguma ação, alguma mobilização. A maioria não participa porque não acredita, acha que não vale a pena, está tudo muito desacreditado. Queria um país mais justo nesse sentido, que as pessoas pudessem sonhar e que, se fossem ousadas, trabalhadoras, tivessem como alcançar os seus sonhos.
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, Brasil
Segurança alimentar, renda et políticas públicas no Brasil : Programa Bolsa Família em questão
Entrevista
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