Há 13 anos uma amiga minha optou por deixar a vida. Exatamente no Dia Internacional da Mulher! Naquele dia eu deveria fazer uma palestra para a ‘Jonge Kerk’ [Igreja Jovem], em Aalst, e só fiquei sabendo do fato no dia seguinte: na manhã do dia 8 de março de 1992, ela se jogou na frente de um trem…
Ano após ano continua sendo, para mim, um dia especial. A mulher sofria do que muitas mulheres e o lado feminino da vida sofrem. Pessoalmente, posso ter alguma idéia do problema devido ao ‘grupo de apoio a vítimas de incesto’ que ajudamos a criar em 1987, em Averbode. Anualmente, o Dia Internacional da Mulher aborda com cada vez mais força e voz as formas de opressão às quais as mulheres são submetidas. Essa impressão eu também tenho aqui no Brasil. Na imprensa, o assunto não é ignorado. Em Curitiba, participo de um dia de debates sobre a questão de ‘gênero’. Cerca de 600 mulheres do MST atenderam a convocação. Na verdade, o encontro tem duração de dois dias mas, numa tarde, tenho a oportunidade de acompanhar Paulo Mayer. É, portanto, um ‘homem’, mas ele vem se dedicando cada vez mais ao tema ‘agroecologia e gênero’. E o que incesto e violência sexual contra a mulher têm a ver com a destruição e violação da natureza, dos povos indígenas?
Inclusão social
Ele faz uma palestra impressionante para estas mulheres batalhadoras do MST brasileiro. Alguns trechos de suas contribuições.
“Qual é o sonho de um agricultor?” Olha para o público. Os 1200 olhos femininos e 600 bonés vermelhos estão voltados para ele.
“Isso mesmo: um trator, uma colhedeira e muita produção! O homem médio quer produzir para o mercado e, se possível, para o mercado internacional.”
“E o que uma mulher defende? Qual é a relação entre ‘gênero’ e ‘agroecologia’?” Elas estão sentadas nas pontas das cadeiras. Alguém da creche toma emprestado o microfone: “Na creche tem uma criança que não pára de chorar. Ela quer a sua mãe. Será que a ‘mãe’ pode vir aqui um pouquinho?”
“As mulheres defendem a reprodução da vida. Gênero defende a ‘inclusão social’: mulheres, homens, crianças, natureza. Produção também, mas não somente uma produção de bens de mercado, distanciada da vida como um todo. A visão feminina da agricultura é a da reprodução da vida, é holística, na qual tudo tem seu lugar e tudo está inter-relacionado. Também a mística é uma parte orgânica disso.
A agroecologia representa preservação e recuperação da diversidade da natureza e da agrodiversidade na propriedade. Ou seja, não é só plantar a soja que nos foi empurrada com a ‘Revolução Verde’. Não, vamos produzir também para nossa subsistência e com a maior diversidade possível. As mulheres sempre foram responsáveis pela diversidade genética no mundo. A relação entre ‘gênero e agricultura’ representa muito mais ‘policultura’ do que ‘monocultura’.”
Durante seu discurso e, principalmente, pensando em agrobiodiversidade na policultura, lembro da prática das mulheres indianas. Vandana Shiva consegue traduzi-la maravilhosamente bem em palavras, no seu discurso ‘Satyagraha van het zaad’ [‘A força da verdade da semente’]. (1)
Diversidade dá resultados
Também me vem à mente Sidimar Luiz Lavandoski. Durante o curso, na semana passada em Chapecó, ele apresentou um exemplo bastante claro de como os agricultores foram tornados ‘heterônomos’ ao longo dos últimos 30 anos. Sidimar: “Muitos agricultores agora só plantam soja e milho. Mas fazendo uma conta simples, verifica-se que – quando comparado com esta uniformidade na produção – o retorno à subsistência traria muitos benefícios para a família.
Uma família consome, em média, um quilo de arroz por semana. São 52 quilos a R$ 2/kg, ou seja, R$ 104 ao ano. Isto significa que a família precisa produzir 25 sacas de milho de 60 quilos para atender sua necessidade básica de 52 quilos de arroz.”
Perguntei: “Sidimar, não entendi: 25 sacas de 60 quilos contra 52 quilos! Explique isso melhor.”
O sensato descendente de poloneses Lavandoski: “Aqui, nós gostamos de calcular tudo em sacas de 60 quilos. No modelo agrícola do agronegócio, a produção de um hectare de milho custa para o agricultor 60 sacas de milho. Em média, ele tem uma produção de, somente, cem sacas de milho. Isto pode variar entre 140 sacas e – num ano como este, de estiagem extremamente prolongada – 40 sacas. Atualmente, muitos agricultores até perderam tudo. Ou seja, para cada saca que sobra para comprar algo fora da propriedade, você necessita de três a quatro sacas de milho. É assim que chego ao resultado de 25 sacas para os míseros 52 quilos de arroz. Se as famílias voltassem a cultivar um pouco de arroz, feijão e frutas, elas estariam bem melhor. O êxodo rural seria bastante reduzido.”
Diversidade aumenta a independência
Paulo continua: “Vocês lutam pela reforma agrária e esta é fundamental, mas não é uma questão de só redistribuir as terras. Se, nos assentamentos, o modelo agrícola não for mudado, vocês continuam sendo ‘interessantes’ – e dependentes – dos fornecedores de sementes e agrotóxicos capitalistas. E para a compra da produção vocês ainda têm que bater à porta de Bunge ou Cargill. Não, produção para consumo próprio é o primeiro passo fundamental na luta contra o capitalismo. E este passo é mais facilmente dado pelas mulheres e pelos jovens do que na cultura masculina dominante. No modelo dominante, soja é a cultura da morte. Vocês defendem a cultura da vida! Sua terra deve estar viva, não morta. Os colonizadores europeus trouxeram consigo a cultura dos cereais mas, na verdade, seria melhor que cultivássemos milho e batatas aqui. Aliás, no Brasil nós temos uma enorme biodiversidade que produz muito mais por hectare do que a soja. Por exemplo, os frutos do pinheiro: estes podem render até 2.800 kg/ha, que pode ser cultivado e colhido com pouca ou nenhuma mecanização. O pinhão, o fruto desta conífera, possui um elevado teor de proteínas. O cultivo da soja exige muitos investimentos e produz, em média, somente 1.800 kg/ha; com muitos insumos e elevado grau de mecanização, às vezes chega a 3.500 kg/ha. No cerrado existe a macaúba, uma palmeira que produz 3.500 kg/ha, com um teor de 38% de óleo. O baru, outra espécie arbórea do cerrado tem elevado teor de proteínas. Ou o buriti, campeão em vitamina A. Diante disso, não há necessidade de manipulação genética de arroz!” (2)
Ele dá mais um exemplo: “Os tomates selvagens dos Andes, que vocês podem cultivar, têm muito ferro e vitaminas. Os tomates ‘melhorados’ que estão nos mercados praticamente não têm ferro. As empresas que fornecem sementes e agrotóxicos são as mesmas que produzem medicamentos. Portanto, eles têm interesse nestes tomates sem ferro. Vocês têm interesse em tomates saudáveis e em plantas medicinais que vocês mesmos podem cultivar.”
Guerra química e consumo de carne
Na volta, pergunto cautelosamente: “Paulo, chamou minha atenção que você até mencionou galinhas caipiras e ovelhas, mas você falou pouco sobre carne. Entretanto, sábado eu vi você matando uma ovelha e comer a carne com gosto. Você falou sobre ‘modelo da morte’ e sobre matar… Para poder comer carne não é preciso matar também?”
“Há matar para destruir e matar para viver. Os povos indígenas daqui sempre caçaram e mataram, mas eles tomaram somente aquilo que foi necessário.”
Em seguida ele me dá uma aula sobre a história da agricultura e da alimentação. É realmente extraordinário: um brasileiro que sabe argumentar com base em tantos fatos históricos. Além disso, ele possui muito conhecimento técnico (e eu não!) e muita visão política.
Vou poupá-los da introdução sobre a situação da alimentação na Idade Média e a pólvora inventada pelos chineses para chegar à 1a Guerra Mundial. Neste ponto, ele confirma o que Sebastião Pinheiro expôs em sua cartilha esclarecedora: a ligação entre a indústria da guerra e a agricultura baseada em produtos químicos. (3)
“Após a 1a Guerra Mundial havia um grande excedente de explosivos e resíduos da guerra química. Estes produtos foram, massivamente, convertidos para uso agrícola, fazendo com que, nos 20 anos seguintes, houvesse um excedente na produção e alimentos e os preços despencassem. Este cenário foi uma das principais causas da depressão econômica da década de 30 do século XX.
E por que tanto alimento? Quando você aplica, pela primeira vez, adubos químicos (especialmente adubos nitrogenados) num solo rico em matéria orgânica, estes ‘queimam’ o húmus, resultando em produções elevadas. Depois de dois a três anos ocorre um declínio, mas aí o agricultor já está dependente da adubação química para manter as produções.
Cada vez que na história da humanidade houve aumento da produção de alimentos, também houve aumento da população. No período conhecido como a ‘Grande Depressão’, os economistas norte-americanos (e não engenheiros agrônomos!) que tiveram a ‘brilhante’ idéia: ‘precisamos reestruturar a agricultura’. Assim cresceu o plano de produzir carne com base em ração animal, pois se você produzir somente alimentos, ganhará muito menos do que com ração animal. ‘Ração = redução dos alimentos’. Ou seja, a ‘invenção’ e uso massivo de rações tiveram como objetivo principal reduzir o excedente de alimentos no mundo, para beneficiar a acumulação de capital… Naquela época ainda se necessitava de dez quilos de ração para produzir um quilo de carne (atualmente são necessários quatro quilos de ração para um quilo de carne; a conversão nas aves seria ainda mais eficiente). E foi assim que o milho híbrido se tornou um importante instrumento para vencer a depressão.”
Cem quilos de soja – quarenta quilos de proteína bruta – três quilos de proteína em forma de carne
Neste ponto, começa a me dar uma luz. Certa ocasião, Wervel traduziu a primeira parte do livro norte-americano: ‘First the seed’ [‘Primeiro as sementes’] (4). Naquele texto realmente é afirmado que, em 1935, o milho híbrido era amplamente cultivado nos EUA e que desempenhou um papel importante na recuperação econômica.
Paulo: “Após a 2a Guerra Mundial aconteceu o mesmo, mas nesta ocasião a ciência já havia avançado na química molecular. Eis que podiam ser criados os agrotóxicos. Pois, o que é que acontece quando você fornece adubos químicos nitrogenados à planta? Além de crescer mais, a planta produz maior quantidade de aminoácidos, o que aumenta o ataque dos insetos e doenças, que são especializados no consumo de aminoácidos.
Por fim, é nesta base da multiplicação de capital idealizada pelos economistas na década de 30 que se apóia a ‘Revolução Verde’ da década de 60. É uma extensão óbvia da lógica econômica – e não necessariamente agronômica – da década de 30. Naquela época surgiu, portanto, primeiro o milho híbrido (5) como elemento-chave para a crescente indústria de ração animal. Depois o componente soja foi agregado à ração. Atualmente, a ração animal contém uma grande variedade de partículas protéicas e energéticas, dependendo do preço no mercado mundial no momento da aquisição da matéria-prima. Atualmente, se você produz cem quilos de soja, você tem 40 quilos de proteína bruta que são reduzidos a três quilos de proteína animal (carne). Isto porque, a cada nível trófico são aproveitados – em média – somente 10% da energia do nível anterior. Se não praticássemos a pecuária dentro deste modelo e, sim, dentro de um modelo agroecológico, poderíamos contribuir de forma mais sustentável para, em pouco tempo, alimentar 6 bilhões de pessoas do planeta. A fome no mundo é um problema político e falta de distribuição de renda. No Brasil, uma galinha caipira não se alimenta de soja orgânica, viu?! Ela cisca e se alimenta dos restos que encontra, de sementes, de plantas nativas, de insetos e de minhocas. A soja orgânica vai para a Europa, já que sua cotação está atrelada ao dólar.”
No futuro, quando a população do planeta for – talvez – o dobro da que é hoje, será necessário consumirmos mais proteína vegetal ao invés de reduzi-la a proteína animal.
“Será que poderemos continuar consumindo tanta carne?”
“Não, com o passar dos anos o preço da carne se tornará proibitivo. Somente os mais ricos é que poderão consumi-la, tanto no Brasil – onde atualmente o consumo de carne é elevado –, quanto na Europa.”
gênero, mulher e violência, proteção da diversidade biológica, biodiversidade, soja
, Brasil
Navios que se cruzam na calada da noite: soja sobre o oceano
Esse texto foi tirado do livro « Navios que se cruzam na calada da noite : soja sobre o oceano » de Luc Vankrunkelsven. Editado pela editora Grafica Popular - CEFURIA en 2006.
Livro
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