Estamos reunidos novamente para o curso de dois dias sobre: ‘OMC e fluxos de proteínas Brasil-Europa. Agricultores flamengos e brasileiros querem participar das decisões’. Trata-se de um projeto de Wervel-Fetraf, financiado pelo governo flamengo [Bélgica]. Deve culminar com uma viagem, entre os dias 7 e 19 de abril de 2005, de 12 flamengos pelo sul do Brasil e um seminário internacional em Chapecó (nos dias 14 e 15) sobre ‘OMC e soja’.
Há mais de um ano estudamos esta matéria não-evidente com um grupo de lideranças rurais. Estes últimos dois dias estão voltados para os preparativos da viagem e do seminário. Como de costume, também fazemos intercâmbio via imagens em vídeo, além de perguntas e respostas sobre a realidade agrícola/agrária do outro, … de ambos os lados do oceano.
Desespero na lavoura. Esperança na rua?
O grupo hoje está um tanto desfalcado, pois nossa reunião coincide com uma grande mobilização de agricultores em diversas cidades, inclusive em Chapecó, onde participam 1300 agricultores familiares. Com uma haste de milho seca ou um pé de soja já sem vida, eles denunciam o drama que aflige o sul de Brasil há três meses. No Rio Grande do Sul, 80% da safra de soja já estaria perdida. A tragédia reduz o entusiasmo dos defensores de organismos geneticamente modificados, principalmente de soja transgênica. É que ontem a Câmara dos Deputados aprovou a ‘Lei de Biodiversidade’. “São boas novas”, diz Ademar Heldt: “Mas vieram num momento ruim.” (Zero Hora, 4 de março de 2005). Heldt (1) é, obviamente, um ‘herói’ no mundo agrícola. Há cinco anos ele planta soja transgênica ilegalmente. Aliás, como a maioria dos gaúchos. Este ano sua lavoura de soja secou. Só restou a ele pagar os royalties para a Monsanto – o dobro do ano passado. O principal assunto das conversas entre os agricultores não é só a seca, mas também que a soja transgênica é menos resistente à estiagem. Eles têm uma produção até 25% menor do que em suas áreas com soja convencional.
Enquanto os agricultores manifestam seu desespero nas ruas, o presidente Lula recebe, em Brasília, o líder dos agricultores, Altemir Tortelli e outros representantes do Rio Grande do Sul e Santa Catarina.
Protejam nossos mananciais!
Devido aos fatos atuais, ‘a seca’ é, obviamente, um ponto de destaque no grupo que discute OMC. “É terrível o que os agricultores estão passando”, suspira uma jovem mulher. Ela prossegue: “Mas, devido à soja transgênica, há muitos anos não se dá atenção aos nossos recursos hídricos. Eles drenam as áreas e plantam soja até nas margens dos rios. Se você diz que isso é ilegal, eles riem na tua cara. Lucro imediato é a única coisa que interessa. E agora, sobraram para nós os rios envenenados e secos.” Alguém complementa: “Nos últimos anos, a região de Chapecó se encheu de frangos, perus e suínos. Os agricultores estão ‘presos’ pelos contratos de produção com Sadia e outras indústrias de processamento de carne. Todos estes animais necessitam de muita água. Carne e água, portanto, para exportação. Agora, já pelo segundo ano, nós recebemos a conta para pagar na forma desta seca terrível.” Um terceiro acrescenta: “Trata-se de um ciclo natural, mas o homem o transforma em uma calamidade devido a seu comportamento em relação a desmatamento, queimadas e uso indiscriminado da água. Nossos antepassados se preveniam para o caso de seca e lidavam com ela de forma mais racional. Meu avô e os outros antigos da vila hoje ainda falam da grande seca de 1943. Naquele ano, a seca durou 9 meses. Hoje, com 3 meses de seca, os rios estão no mesmo nível do que naquela época, após 9 meses. Na nossa região, em Sananduva, há 25 rios. Neste momento, cinco estão completamente secos.”
Por fim, dou minha contribuição como europeu: “Aparentemente não aprendemos muito com a história. Há mais de 3 mil anos a Grécia foi desmatada. O solo fértil foi lavado para o mar e a terra está, até hoje, seca e sem vida. Há 2 mil anos, muitos países na região do Mar Mediterrâneo foram devastados, entre outros, a Península Ibérica. No ‘descobrimento’ do Brasil, o Nordeste foi arrasado, tendo como conseqüência a seca que já aflige as pessoas e a natureza há cinco séculos. A partir do século XIX e, principalmente, do século XX foi a vez do sul do Brasil. E agora, há algumas décadas, segue a região amazônica. Recebi aqui um e-mail de que em Portugal, desde setembro de 2004, não cai uma gota d’água. Para a agricultura, o prejuízo já foi estimado em 1 bilhão de euros. Nenhuma atividade agrícola é poupada neste momento. O círculo se fechou: Portugal-Brasil-Portugal (2).”
Carne e seca?
No período da tarde, discutimos o esboço do texto sobre a visão conjunta para o seminário em abril. Eu aponto a eles um trecho controverso sobre o consumo de carne e a capacidade de suporte de nosso planeta. Abordar o tema ‘consumo de carne’ na Europa é bastante delicado mas, mais ainda, no Brasil. Eu relato meu encontro com uma mulher vegetariana no Fórum Social Mundial de 2002, em Porto Alegre: “Foi lindo de ver: Fetraf tinha lá no Fórum uma feira agroecológica com o educativo ‘Túnel da história da agricultura e a luta da Agricultura Familiar’. Também havia uma série de debates e barracas para alimentação. Centenas de pessoas procuraram a excelente comida, preparada com produtos orgânicos. Conversei com pessoas de diversos países. Inesperadamente também com uma gaúcha, uma mulher do Rio Grande do Sul. Com lágrimas nos olhos, ela me contou sobre seu modo de vida vegetariano (3) e sobre o fato de que ela foi praticamente banida de sua família. Aparentemente ‘não comer carne’ é muito ameaçador numa cultura carnívora, da qual a cultura gaúcha é uma representante por excelência.”
O texto provoca o confronto, mas eu fico abismado como eles lidam com ele. Comer carne, deixar a luz acesa, desperdiçar água: as evidências estão aí. Como um peixe não se dá conta de que está vivo graças à água que o rodeia, assim o brasileiro de classe média está mergulhado na abundância que seu país o oferece. Após uma discussão interessante, Sidimar Luiz Lavandoski fala:
“Eu sou gaúcho de origem polonesa e ‘portanto’ como muita carne, mas tenho aqui cinco razões para deixar de comer carne:
1 - há a evidente poluição da água e do ar;
2 - a carne não é mais saudável (hormônios, ração animal geneticamente manipulada etc.);
3 - os animais são submetidos ao ‘confinamento’. Eles ficam numa prisão e nunca vêem a luz do sol ou sentem as gotas da chuva;
4 - estamos vivenciando uma enorme erosão genética. No longo prazo, só sobrarão vacas da raça holandesa Holsteiner;
5 - tudo isso ocorre dentro da lógica da redução de diversidade na produção.”
Taquara
Alguns dias depois, estou com Agnes Vercauteren na casa de amigos em Curitiba, Marfil e Darly, da AOPA (Associação para o Desenvolvimento da Agroecologia no estado do Paraná). Nós retomamos o tema da seca. Agnes diz: “A cada 30, 33 anos, há aqui uma grande seca. É nesta época que, em quase toda a região, a taquara floresce. As plantas que florescem, produzem frutos e definham. As sementes são ricas em proteínas e são usadas como alimento para os peixes.” Eu pergunto: “O definhamento das plantas também coincidiu com a seca de 1943?” Marfil: “Sim, e ao mesmo tempo ocorreu uma grande praga de ratos, pois as sementes da taquara são bastante nutritivas, de modo que os animaizinhos se reproduziram em curto espaço de tempo. Em 1973 também foi assim e agora, em 2004-2005. A seca de 1973 foi acompanhada de grandes incêndios florestais no Paraná. Na verdade, o término do ciclo da taquara representa uma possibilidade de recuperação e reestruturação da floresta. Taquara é muito dominante e inibe as espécies lenhosas. Agora elas têm a chance de crescer e assim, recompor a biodiversidade da floresta.” Continuo refletindo: “49 não é 33, mas os judeus têm uma variante bíblica – o jubileu – a cada 49 anos (7 x 7 anos sabáticos). Era um sistema (ou pelo menos, este era o propósito) de restabelecimento das relações, perdão de dívidas, devolução de terras griladas. Seria, principalmente, um restabelecimento social, mas com implicações ecológicas indiretas. Temo, porém, que não passou de um sonho bíblico.”
Para os povos indígenas, Kaingang e Guarani, estes anos serão, com certeza, de extrema pobreza. A par da agricultura, sua segunda fonte de renda é a venda de artesanato. Como as cestas e outros produtos artesanais são feitos com taquara, sua fonte de renda secou – literalmente – por alguns anos.
Amanda: nem carne, nem açúcar
Marfil e Dauly têm uma chácara agroecológica.
Desde há pouco tempo também pastam lá um rebanho de ovelhas. Paulo e Frederik abatem uma ovelha pois teremos festa à noite. Será um churrasco! Será uma noite de celebração da carne e da amizade. Também aqui no Paraná, domina a cultura gaúcha. Mas, vejam só!? A filha mais velha, Amanda, de 15 anos, é vegetariana. Durante toda a tarde, ela se ocupou no preparo de excelentes pratos vegetarianos para servir à noite. Enquanto a maioria das pessoas se excede no consumo da carne, ela continua – calmamente – a oferecer seus pratos vegetarianos especiais. Ela é a simpatia em pessoa. Ela não come carne nem peixe. Além disso, não quer saber de açúcar. Ela está ‘duplamente desajustada’ na sociedade brasileira: além de carne, os brasileiros consomem muitos doces. Sua família a apóia na sua peregrinação vegetariana e isenta de açúcar. Mas seus entes queridos continuam atendendo, com entusiasmo, ao apelo da carne. Não percebo nenhuma agressividade, nem por parte dos carnívoros nem da Amanda. Ao escrever este lampejo, pergunto a ela se não é difícil ser vegetariana neste contexto brasileiro. Amanda: “É claro que eu gostaria que eles parassem de comer carne. Eles me apóiam e me compreendem. Nós já discutimos bastante sobre meus argumentos. Por exemplo, a quantidade de terras e alimentos necessária, por ano, para manter uma vaca daria para alimentar 40 pessoas. Na história há uma série de sistemas filosóficos, espirituais e religiosos que são todos vegetarianos.” Ela me dá bibliografia sobre o tema. Estou realmente impressionado com a forma madura que ela lida com esta difícil questão.
Desejo muita coragem e energia a Amanda. Afirmo que ela, com certeza, deve conversar com Gert Coppens, Mieke Frehe, Tine Becuwe e Peter Breugelmans. Eles participarão da viagem dos ‘belgas’. Todos eles são vegetarianos há anos.
Em abril nós seremos hóspedes desta família extraordinária.
soja, seca, degradação do meio ambiente, agricultura e pecuária
, Brasil
Navios que se cruzam na calada da noite: soja sobre o oceano
Esse texto foi tirado do livro « Navios que se cruzam na calada da noite : soja sobre o oceano » de Luc Vankrunkelsven. Editado pela editora Grafica Popular - CEFURIA en 2006.
Livro
Fetraf (Fédération des travailleurs de l’agriculture familiale) - Rua das Acácias, 318-D, Chapecó, SC, BRASIL 89814-230 - Telefone: 49-3329-3340/3329-8987 - Fax: 49-3329-3340 - Brasil - www.fetrafsul.org.br - fetrafsul (@) fetrafsul.org.br
Wervel (Werkgroep voor een rechtvaardige en verantwoorde landbouw [Groupe de travail pour une agriculture juste et durable]) - Vooruitgangstraat 333/9a - 1030 Brussel, BELGIQUE - Tel: 02-203.60.29 - Bélgica - www.wervel.be - info (@) wervel.be