Tomemos o Carnaval no Brasil
No Brasil, a economia pára durante cinco dias. Parada total! Normalmente, ouço os caminhões passarem durante todo o dia. O som difuso permeia as folhas da floresta e ‘martelam’, constantemente, os sensíveis ossos de meu sistema auditivo (1). No Carnaval: nada! Silêncio total. Um silêncio que é como um bálsamo para meus ossos, neste país de agito e barulho (2).
Em outros lugares, principalmente nas grandes cidades, a programação é de cinco dias ininterruptos de festas. Curitiba, São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador da Bahia. Lá na Bahia é onde a maioria da ‘alma festiva popular’ ainda se diverte na rua. Durante cinco dias, 2 milhões de pessoas cantam e pulam à exaustão. Neste ano, sob chuva torrencial – mas isto não importa. É bem mais à vontade do que no carnaval cheio de estilo do Rio de Janeiro, mas os turistas são atraídos para cá como moscas. Entre os dois milhões de foliões em Salvador, há 1,1 milhão de estrangeiros balançando os quadris.
Os brasileiros que não gostam da confusão do Carnaval fogem para as praias. Mas não são facilmente encontrados em regiões de florestas, na natureza, ainda que o agro-turismo esteja vivendo um forte crescimento. Por exemplo, no Pantanal, 99% dos turistas são estrangeiros, principalmente europeus e, raramente, um ou outro norte-americano. É como se o resultado da mistura racial que se chama ‘brasileiro’ ainda tenha em si algo da alma Guarani. Os Guarani são uma tribo indígena que, originariamente, vivia no litoral e próximo de outros corpos de água. Nômades que são, há séculos vêm sendo expulsos de suas terras pelos imigrantes europeus. Os jesuítas tentaram convertê-los nas Missões. Durante os serviços religiosos, é possível perceber a saudade do mar. Na parte da frente da casa de reza, há um altar com água, como substituto da infinitude do mar. No Brasil, dos 200 povos indígenas que sobreviveram à invasão européia, esses são os mais numerosos. Eles se mudam de uma reserva indígena para outra. Em busca de suas almas. Até se fundirem com o oceano?
Carnaval no Rio
O Carnaval no Rio de Janeiro é mostrado em quase todos os lares do mundo. Principalmente os peitos nus, cheios de purpurina. Aqui no Brasil, os noticiários da televisão têm sua duração reduzida e a programação é totalmente alterada para que possam transmitir os muitos desfiles. Na maior parte, o desfile na Sapucaí, no Rio de Janeiro. A passagem pelo sambódromo de cada escola de samba leva mais de uma hora. Todas as escolas de samba têm nomes sonoros: a Tijuca, a Vila Isabel, a Mocidade Independente de Padre Miguel, a Mangueira, a Porto da Pedra, a Caprichosos de Pilares, a Viradouro, a Portela, a Imperatriz Leopoldinense, a Grande Rio, a Beija-Flor, a Tradição. A Salgueiro foi muito elogiada na primeira noite como uma das mais belas e mais luxuosas.
Luxuosas? É de se perguntar de onde devem vir tantos milhões. Os jornais falam de ‘teatralização’ do samba. Ou seja, cada vez mais teatro. Teatro caro, uma máscara, numa cidade com tanta pobreza e exclusão. Mas para a população é uma festa, pois assim podem – por alguns dias – esquecer sua miséria. Carnaval como ópio, diria Marx. Uma variante religiosa.
Os novos imperadores
Acho que encontrei uma parte da resposta na tela da televisão. Imagens com propaganda da Nestlé e da Kaiser (3) invadem, regularmente, a tela. Você já conhece: Nestlé, a maior multinacional de alimentos do mundo. Em 1888, mandaram o Imperador Dom Pedro II ‘passear’. A partir da década de 30 do século XX, reina no Brasil um Imperador Suíço – ‘Dom Pedro Nestlé’. É assim que funciona.
E a Kaiser? Bem, esta é uma das marcas de cerveja que não pôde se unir na Ambev brasileira e, com esta, formar a nova Inbev. Inbev, a maior cervejaria do mundo e, ainda por cima, belgo-brasileira! Não, Kaiser é a cerveja da Coca-Cola. E, sim, eles têm outras bebidas: Coca-Cola, Fanta, Sprite, cerveja, água (4). Que tal Coca-Cola como imperatriz?
Mas, o que vejo agora na telinha?! A ‘Tradição’, com ‘O samba da soja’. Eles cantam: “De Sol A Sol, De Sol À Soja – Um Negócio Da China!” (5)
Quase caí da cadeira! Enquanto os caminhões de soja, para variar, não estão rodando pelas estradas, aqui eles encenam a história sambando: a soja já era utilizada há 5 mil anos na China; os primeiro grãos chegaram no final do século XIX, na Bahia, onde também surgiu o samba; da Bahia, a soja mudou-se para o Rio Grande do Sul, onde o grão se popularizou mesmo nas décadas de 50 e 60; em seguida, a conhecida história de sua expansão via Paraná para o Centro-Oeste, que agora é a maior região produtora; toda a impressionante mecanização, o transporte e o ‘avanço’ no Centro-Oeste estão representados; e… na década de 80 a soja retorna – graças aos gaúchos – ô alegria, para a Bahia! Ela é a ‘salvação da lavoura no Brasil’. Salvador da Bahia. Agora, Soja, Salvadora do Brasil. Por isso, o samba-enredo fala de ‘anjos, voar e bênção’. Soja, Salvadora do Brasil!
E quem é que paga o show? Exatamente, o agronegócio do Centro-Oeste. A Tradição firmou uma ‘parceria’ e recebeu R$ 1,5 milhões de Blairo Maggi, o imperador da soja e governador do Mato Grosso, da New Holland e de outros parceiros.
Dentro em breve (17 e 18 de março de 2005) temos que ir a Foz do Iguaçu, para reunir-nos com Blairo Maggi, com Unilever, Carrefour & Cia em torno de uma mesa. Uma ‘Mesa Redonda’ da assim chamada ‘soja sustentável’, num hotel cinco estrelas muito chique – ‘Bourbon’ é o nome deste paraíso, a caminho das Cataratas do Iguaçu. É uma iniciativa da World Wildlife Fund (WWF). Só posso pagar minha inscrição em dólares. Assim como, no mercado mundial da própria soja, os preços são também expressos em dólares. Felizmente a delegação da Fetraf hospedou-se num hotelzinho simples em frente a este monstruoso Bourbon.
Estou curioso para saber como Maggi re-avalia seu samba. É que a Tradição não ganhou o concurso dos desfiles no Rio. Será que não mostraram peitos nus o suficiente?
E Carlos Heitor Cony?
Em sua coluna, ele se indignou porque ninguém mais se indignava. Enquanto nos outros anos as escolas de samba representaram a importância da Amazônia, este ano foi a vez do ‘Samba do desmatamento’. Do agronegócio. Para criar, nas cidades, aceitação da invasão do agronegócio no campo. Carlos indignou-se com o fato de que fazendeiros, grileiros e madeireiros, no Pará, podem simplesmente derrubar a floresta em terras que pertencem à União. Assim, sem mais nem menos. “Por que não existe um dia nacional da indignação?” exclamou ele.
Alguns dias depois, neste mesmo Pará, foi assassinada a freira norte-americana Dorothy Stang. Assim como, semanalmente, são assassinados brasileiros anônimos. Seus nomes mal são lembrados…
Agora o Brasil e a imprensa nacional estão indignados. Durante dias a forma como a irmã Dorothy foi assassinada é notícia de primeira página: quem estava por trás; o que ela representava, etc. Enquanto isso, me deparo com uma propaganda do imperador Nestlé na revista semanal ‘Isto é’. Eles reavaliam o Carnaval, seus lucros e sua presença marcante no evento. Eles estão bastante orgulhosos por poderem ‘alimentar o corpo e alma do povo brasileiro’.
Ontem à noite liguei para Oscar, no Rio. Oscar Niemeyer, 97 anos, comunista, amigo de Fidel Castro, ainda trabalhando como arquiteto. Ele ensinou o povo a morar. Junto com Jean-Pierre Rondas, vou entrevistá-lo no dia 1o de abril para a rádio Klara. Não, não é mentira de 1o de abril.
Estou curioso para saber se ele ainda compartilha a indignação de Carlos, o velho Oscar.
Havia festa no palácio imperial
Onde se comemorava o sucesso da colheita
A realeza conduzida em palanquins
Admirava tigres brancos
Com jade na « terra dos mandarins »
Brasil, meu Brasil, meu Brasil se fez presente
Elevando a economia nacional
Cana-de-açúcar e café
Pro mundo foi genial
Hoje tem soja e Tradição no Carnaval
O imigrante veio plantar (oba!)
Nessa pátria mãe gentil
Da China pra cá em solo fértil
Terra de encantos mil
De grão em grão (ô de grão em grão)
O milagre acontece
Ao raiar de cada dia
Pro mundo se alimentar
E os anjos abençoando
Nossa alegria nessa festa popular
Eu também vou voar,
Eu vou voar na passarela
De sol a sol nesse chão
Vou semeando esse grão
Abençoada seja a plantação
(Autores: Tonho, Lu Gama, Nascimento)
cultura popular, deflorestação, multinacional, soja
, Brasil
Navios que se cruzam na calada da noite: soja sobre o oceano
Este era o título de uma coluna de Carlos Heitor Cony, na ‘Gazeta do Povo’, de 9 de fevereiro de 2005. Eu leio com prazer as colunas do Carlos! Ele é tão veemente em sua indignação.
Livro
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