Nos últimos dias, tenho me preparado para uma entrevista com um dos patriarcas da teologia da libertação, José Comblin. No final da década de 60 ele já falava da ‘teologia camponesa’. A título de preparação para esta conversa, estou lendo – fascinado – o livro ‘A esperança dos pobres vive’ (editora Paulus, 2003). É uma enorme coletânea de textos escritos pelos amigos e amigas de Comblin, em homenagem aos 80 anos do sacerdote de Bruxelas [Bélgica]. Para minha grande surpresa, deparei-me com a introdução da contribuição, em espanhol, de Thomas Bamats. Ele começa com um alerta de Martin Luther King a seus companheiros, nna década de 60: “Cuidado com o efeito paralisante da análise”. Em espanhol, o alerta é ainda mais sonoro: “parálisis del análisis”. Analisar é necessário, mas fôlego para viver também.
Portanto: nesta série de crônicas sobre soja também há lugar para sinais de esperança.
Ainda assim, um pouco daquela análise imprescindível
Está ocorrendo um conflito planetário entre a agricultura familiar autônoma e a agricultura produtivista heterônoma enquanto parte da agroindústria multinacional. No Brasil não é diferente. Acrescente-se a isso que este subcontinente é campeão de concentração de terras. A soja, enquanto carro-chefe do que aqui é chamada – sem complexos – de ‘agricultura capitalista de exportação’, aguça ainda mais esse processo histórico. Recentemente, foi lançado uma cartilha da Via Campesina: A Política Destrutiva do Banco Mundial para a Reforma Agraria no Brasil (1). Nesta cartilha, o Brasil é descrito como: “Latifúndios com mais de mil hectares = 1% das propriedades; porém, ocupam 45% das terras agrícolas. Entre 1970 e 1996, a proporção (sejamos francos, o grau de concentração de terras) mudou: o número de propriedades com menos de cem hectares passou de 90,8% para 89,3%, mas sua área total diminuiu em 20%. Os latifúndios aumentaram de 0,7% para 1% das propriedades e sua área passou de 39,5% para 45% de todas as terras agrícolas.”
“Soja lidera – O resultado positivo das exportações, em 2003, deve-se ao crescimento das vendas em todos os grupos de produtos, à melhoria nos preços internacionais das principais matérias-primas e à abertura de novos mercados. No total, as exportações de soja cresceram 35,2%, de US$ 6,008 bilhões (2002) para US$ 8,125 bilhões (2003) (detalhando este aumento, a soja em grão contribuiu com 41,5%, o farelo de soja com 18,3% e o óleo de soja bruto com 54,3%).”
E no texto ‘A modernidade e a posição do Brasil no capitalismo globalizado’, do professor titular do departamento de geografia da FFLCH-USP Ariovaldo Umbelino de Oliveira, (parte do material didático de Fetrafsul, em colaboração com Wervel) encontra-se o seguinte trecho:
“Segundo o último Censo Agrário, de 1996, a agricultura familiar ainda produzia 31% da soja. Isto certamente está em declínio, mas um novo censo ainda precisa ser realizado.”
China: berço da soja
Mesmo assim… cuidado com o sentimento de paralisia ao fazer estas análises. Há muito de bom a dizer, mesmo sobre a soja. Há mais de 5 mil anos, a soja é uma planta sagrada para os chineses. É bem verdade que eles importam soja transgênica dos EUA, Argentina e do sul do Brasil, mas eles são muito rigorosos com suas próprias lavouras de soja. A soja importada destina-se somente para transformação em óleo e farelo de soja. A China é o berço dessa planta milagrosa. Os chineses possuem a maior agrobiodiversidade do mundo no que diz respeito a esta espécie, com elevados teores de óleo e proteínas.
Foram outros asiáticos, os japoneses, que introduziram a soja no Brasil, muito antes da Revolução Verde imposta aqui pelo Banco Mundial, no final da década de 60 e início da década de 70. Foi devido a esta revolução ‘verde’ que a planta sagrada foi absorvida pela lógica do capitalismo globalizado.
Agroecologia como um novo caminho
Dos 900 mil agricultores familiares nos estados do sul do Brasil, cerca de 230 mil incluem a soja em seus planos de rotação de culturas. Principalmente os minifúndios de Santa Catarina e Paraná utilizam esta cultura de modo bastante criativo. Como outras leguminosas, a soja é capaz de – em simbiose com bactérias nas raízes – fixar, gratuitamente, o nitrogênio do ar. Devido à propaganda ‘verde’ da época e aos créditos baratos do Banco Mundial, os agricultores tornaram-se parcialmente dependentes – heterônomos – das indústrias fornecedoras de sementes e de toda sorte de produtos químicos. No livro de Sebastião Pinheiro (2), redigido de modo bastante didático, lê-se que os agricultores, há dez anos, redescobriram o caminho da agroecologia. Para eles é um modo de vida e produção em sintonia com a natureza, mas também é uma expressão de sua forte determinação de readquirirem independência em relação às multinacionais de sementes, produtos químicos e organismos geneticamente manipulados, lideradas pela Monsanto.
Mesmo num sistema agroflorestal (3), a soja pode ocupar uma posição modesta. Estou digitando esta crônica na propriedade de Agnes Vercauteren, situada no município de Turvo, PR. Tradicionalmente esta é uma região de florestas, onde os agricultores moram e criam o gado dentro da floresta. À margem da floresta eles cultivavam, antigamente, seu feijão e suas verduras. Nas últimas décadas, a tradição foi um pouco modificada pela ‘modernidade’, mas grande parte da floresta permanece de pé. Graças ao fato de ser uma região com relevo bastante acidentado e com afloramento de rochas e solo muito ácido, o gado ainda pode se deliciar nas florestas de araucária.
A propriedade tem 61 hectares, cuja maior parte é ocupada por floresta aberta, onde as vacas pastejam num sistema rotativo. Algumas áreas foram cercadas, formando uma reserva natural permanente. Lá, as espécies vulneráveis, como o xaxim pré-histórico e as palmeiras, podem tranqüilamente produzir mudas para a regeneração natural. Três áreas formam os pastos, onde é semeado aveia e azevém para o inverno. É que os invernos aqui podem ser rigorosos e, neste caso, o gado encontra pouco alimento na floresta. O pasto maior será cultivado neste verão com… soja. Desta maneira, seu cultivo foi inserido de forma equilibrada no sistema de produção agroecológico, que está – no sentido literal e figurado – a quilômetros de distância da monocultura da soja que se inicia na região de Guarapuava. O pasto não é utilizado no verão, a soja proporciona uma renda adicional e fixa nitrogênio para si e para o cultivo de azevém e aveia no inverno. E um agricultor vizinho com pouca terra também é beneficiado. Ele tem autorização para usar a terra e realiza o trabalho de plantio e colheita.
A Serra da Esperança
Jairo, meu vizinho em Guarapuava, me contou que dentro de alguns dias será realizada uma importante reunião para melhorar a preservação na região. A expectativa é de que a ‘Serra da Esperança’ seja decretada uma Área de Proteção Ambiental, estendendo-se até aqui, no Turvo (PR), onde o desmatamento e a agricultura somente poderão ser realizados mediante uma série de restrições.
Ainda há esperança. Quando vejo o corte raso neste país, ainda encontro consolo nas árvores e florestas que permanecem de pé. As lágrimas existem. Raiva e tristeza por causa de tanta destruição, também. Mas, finalmente, há a ‘Esperança’. Afinal, nós flamengos não podemos falar muito. Amanhã, comemora-se em Flandres o dia 11 de julho de 1302. Já no século XIII – portanto, ainda antes do Guldensporenslag [‘Batalha das Esporas Douradas’] – grande parte de Flandres já havia sido desmatada.
Agora só resta esperar que, algum dia, os gaúchos também se convertam. No Rio Grande do Sul, muitos agricultores familiares também se deliciam com a monocultura da soja. Eles participam do jogo da Monsanto. Desde 1996, eles contrabandeiam, da Argentina, sementes de soja geneticamente modificada ‘Roundup-Ready’. Atualmente, cerca de 90% da soja neste estado é transgênica. O cultivo de soja orgânica tornou-se quase impossível. Além disso, eles sentem a compulsão missionária de divulgar, para todo o Brasil, os benefícios da soja. Como descendentes de europeus – principalmente, de alemães e italianos – eles se sentem enviados. Como ‘missionários’, eles derrubam as florestas desde o Centro-Oeste até a Amazônia.
O que vale a pena imitar dos gaúchos é a expansão da ‘agroindústria familiar’. Nos últimos anos, surgiram no Rio Grande do Sul e nos outros estados do sul do Brasil diversos tipos de processamento, feitos pelos agricultores, em sistemas cooperativos ou não. Assim os agricultores conseguem resistir a multinacionais, como Nestlé e Parmalat, mas eles também conseguem manter mais valor agregado na área rural e na agricultura familiar. É interessante observar como, neste ambiente carnívoro (4), agora a soja também é transformada em diversos produtos para consumo humano. A ‘pegada ecológica’ é reduzida pelo consumo direto de proteína vegetal. E os agricultores não são mais reduzidos a meros fornecedores de matérias-primas. Não, eles geram novos trabalhos em seu meio.
Há ‘Esperança’, mas certamente vou perguntar ao pai da ‘teologia camponesa’ o que ele quer dizer com a muito utilizada palavra ‘missão’.
Será que existe algo como missão para a vida e missão para a morte?
10 de julho de 2004.
agricultura familiar, agricultura de exportação, acesso a terra, sistema agrícola, comércio internacional, soja
, Brasil, Argentina, China
Navios que se cruzam na calada da noite: soja sobre o oceano
Esse texto foi tirado do livro « Navios que se cruzam na calada da noite : soja sobre o oceano » de Luc Vankrunkelsven. Editado pela editora Grafica Popular - CEFURIA en 2006.
Livro
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