Limitações e obstáculos da vida em mega- assentamentos precários e a necessidade de recuperar a cidade
A Carta pelo Direito à Cidade, articulada por Habitat International Coalition e apoiada por uma ampla rede internacional, busca o reconhecimento do papel e da participação dos residentes, grupos comunitários e movimentos sociais (Brown e Kristean 2009). Em 1999, a Venezuela adotou o direito à cidade na sua Constituição, o que inclui o direito à moradia segura e digna, o direito à participação nos processos democráticos e, o que é ainda mais interessante, o direito a formar unidades de planejamento locais, bem como o controle da tomada de decisões no desenvolvimento e no planejamento. Neste artigo se fará um exame do contexto dos assentamentos precários urbanos e dos movimentos sociais antes da obtenção dos direitos legislativos e constitucionais. Em seguida se analisará o efeito catalisador que significaram as mudanças constitucionais e, especificamente, como deram suporte para a criação dos Comitês de Terra Urbana (CTU). Finalmente, serão examinados os múltiplos efeitos gerados pelo apoio do governo às organizações comunitárias locais e à redução da pobreza.
Contexto, realidades em terreno: a cidade informal e a luta pela inclusão
À exemplo de muitas cidades de países de baixa renda, um passeio pelas ruas de Caracas nos levará ao encontro de um grande número de construções e uma enorme variedade de contextos. Estima-se que entre 60 e 70% das habitações localizam-se em áreas de alto risco (inundações, deslizamentos de terra e delinqüência), em condições muito mais precárias do seria considerado adequado ou seguro por aqueles que lá vivem (Antillano 2005:. 207-208; Núñez n.d). A zona “formal” da cidade se estende sobre um vale estreito. Os moradores destas áreas compreendem desde pessoas muito ricas até muito pobres. Além disso, podem-se observar assentamentos ilegais e amontoados onde quer que haja espaço: ao lado de canais de irrigação, em edifícios abandonados e em espaços urbanos sem uso e em ruínas.
Contudo, o que circunda a cidade é ainda mais impactante. Embora planejadores e arquitetos tenham lutado para criar um distrito nacional atrativo, os assentamentos informais expandiram-se pelas encostas íngremes ao redor da cidade, dando lugar a um dos assentamentos precários mais antigos e grandes da América Latina (Núñez n.d.; Ellner 2004: 120-130). O contraste é forte, impressionante e pouco comum. Ele também nos faz questionar quem está construindo as cidades do presente. Como e porque os urbanistas, designers e visionários políticos conseguiram excluir os mais pobres da cidade, a maioria da população, é uma longa e interessante história (ver Ellner 2004). Basta dizer que os assentamentos precários localizados em Caracas e seus arredores são definidos pela exclusão econômica e física da própria cidade (Antillano 2005: 206; Cariola et al 2005b: 22-25; Lajoie 2006:5-6). Os bairros de Caracas são pequenas cidades hiperorgânicas: construíramse casas umas sobre as outras antes que houvesse vias de pedestres, acesso para veículos, água potável, serviços de saneamento, eletricidade e sistema de esgoto.
Estes assentamentos continuam aparecendo e expandindo-se ao redor das zonas periurbanas de Caracas. Antillano (2005) defende o desenvolvimento dos movimentos sociais dos últimos vinte anos, antes da constituição de 1999, como caótico e desorganizado. Devido aos muitos obstáculos culturais e institucionais, os grupos comunitários enfrentavam dificuldades que pareciam invencíveis. Contudo, seriam estes mesmos grupos e ativistas os que no futuro levantariam a bandeira dos CTU para construir algo novo tomando como base sua própria experiência.
Reforma: transformando leis e processos, obtendo acesso
A constituição de 1999 colocou em andamento grandes projetos a longo prazo na Venezuela. Especificamente, definiu a moradia como um direito humano. Considerando a realidade do país, esta declaração poderia soar descarada e pouco realista. Contudo, na constituição também se promove a participação popular, através do artigo 26, e são instaurados conselhos de planejamento local, por meio do artigo 182 (Cariola e LaCabana 2005b: 27-29).
Estes dois artigos foram logo apoiados pelo que hoje de conhece como o famoso Decreto 1666, o qual identifica os Comitês de Terra Urbana como entidades responsáveis pela regularização eficiente, pela posse da terra assim como pela participação e organização comunitárias (1).
Vitórias: Segurança de posse, melhorias na moradia, organização e influencia política
O movimento Bairro, criado antes eleição de Chavez, e a constituição de 1999 sentaram, de muitas formas, as bases para o que hoje é uma revolução habitacional (Antillano 2005: 207-208). A legislação que partiu de dentro e que apoiou a constituição outorgou a legitimidade e os mecanismos necessários para abrir o acesso aos processos e estruturas dentro do quadro formal da cidade.
Como conseqüência, os grupos comunitários foram capazes de constituirse em grupos de CTU, ao passo que regularizaram a terra onde viviam, obtendo a posse legal de suas propriedades. Construir este nível de organização não é uma conquista menor. Contudo, o acesso à posse da terra como comunidade cria um nível de participação e abre as possibilidades para um planejamento comunitário futuro. A OTN afirma ter entregado, nos seis primeiros anos de trabalho, 350.000 títulos de propriedade que beneficiaram cerca de 520.000 famílias, segundo o Centro de Direito à Moradia e contra os Despejos (COHRE na sigla em inglês, 2008: 3-5).
O apoio que partiu das camadas mais baixas na Venezuela atuou como catalisador dos CTU, que organizaram gente a nível paroquial, regional, metropolitano e nacional. Destas assembleias surgiram novas propostas, tais como oficinas de educação e capacitação para os membros e representantes dos CTU, a criação dos Centros de Participação para a Transformação do Hábitat (CPTH) e os Pioneiros, a exemplo do surgimento de novas propostas para o MVH com o objetivo de criar uma política habitacional mais integrada (2). Os CPTH estão envolvidos na criação de novos assentamentos, no que trabalham junto ao governo com o fim de construir moradias e facilitar um novo desenvolvimento das terras desocupadas ou mal aproveitadas, atuando como agentes principais de investimento. Os Pioneiros foram implementados pelo CTU para tratar questões relacionadas à aquisição da terra e dos projetos de desenhos de construções novos e antigos. Ultimamente, os CTU propuseram a Lei Especial de Regularização Integral da Posse da Terra dos Assentamentos Urbanos Populares. Esse será um grande passo que servirá para tratar questões tais como os conflitos institucionais, o incremento da burocracia, a aceleração do processo de regularização e a criação de novos instrumentos tais como o Banco da Terra Urbana (COHRE 2008:4).
O resultado final mostra que não somente se deve ir de encontro aos processos e a transformação do direito à moradia e políticas habitacionais, mas também se devem buscar novas formas de produção da cidade, que considerem desde os espaços pessoais (o lar) até a esfera pública e privada (ruas, parques, espaços abertos e públicos). A interrogação hoje em dia é até onde chegará a influência dos CTU com respeito à cidade e qual será o resultado do debate acerca do socialismo e da cidade.
Observações: a luta comunitária alcança novas dimensões – reconhecimento constitucional do direito à cidade
O movimento habitacional é um exemplo da boa prática, pois demonstra a eficácia da mobilização civil para chegar aos níveis institucionais. O movimento cívico de direitos habitacionais em Caracas tem surtido efeitos em diferentes níveis da cidade:
• novas definições das necessidades dos pobres;
• enfoques inovadores para a regeneração urbana e o desenho, além de novidades relativas a integração dos bairros no processo habitacional;
• reformas estatais e descentralização da moradia, posse e regularização da terra;
• tomada de decisão e supervisão de projetos de maneira participativa e multissetorial, que provenham do povo.
• novas associações entre o setor público e o privado;
• e, como resultado final, uma dimensão que foi vista por todo o país.
Além disso, este caso ilustra a importância que as políticas sejam provenientes do povo, com o objetivo de que satisfaçam as necessidades e demandas da comunidade que se mobiliza. Neste sentido, a criação de um mecanismo para outorgar a posse da terra aos CTUs transformou-se no catalisador construído sobre a base do capital social dos grupos comunitários, o que permitiu que estas estratégias de sobrevivência e seus resultados dessem um impulso significativo ao movimento. Os imensos assentamentos informais estão se transformando em proprietários da cidade mediante sua participação direta na criação da cidade a nível de bairro e a nível nacional. Os CTU e sua experiência estão na vanguarda da política e dos movimentos sociais que os afetam. Estão constantemente consolidando precedentes, além de mobilizar-se e organizar-se de maneira bastante desenvolvida. Se estivessem servindo como padrão, certamente seriam um bom parâmetro. Para os CTU a luta ainda continua, porém já têm tomado as medidas necessárias para que se reconheça seu direito à cidade.
habitat spontané, habitat populaire, habitat urbain, politique de la ville, gestion urbaine, propriété foncière, pauvreté
, Venezuela, Caracas
Bibliografia
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HIC (Habitat International Coalition) - General Secretariat / Ana Sugranyes Santiago Bueras 142, Of.22, Santiago, CHILI - Tel/fax: + 56-2-664 1393, + 56-2-664 9390 - Chili - www.hic-net.org/ - gs (@) hic-net.org