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Desafios à implantação do direito à alimentação no Brasil

Clóvis Roberto Zimmermann

06 / 2008

Analistas nacionais e internacionais comungam entre si o pressuposto de que, nas sociedades modernas, não há razões para questionar a existência das políticas públicas sociais e dos programas de transferência de renda (1). Pesquisas empíricas têm comprovado que quanto mais desenvolvidos, industrializados e maior a renda per capita dos países, maiores são os investimentos em políticas sociais e programas de transferência de renda e, por conseguinte, menores os índices de desigualdade e pobreza (Ullrich, 2005).

No Brasil, o Programa Bolsa Família (PBF) tornou-se importante instrumento de combate à fome, cuja proposta vem sendo amplamente elogiada por cientistas sociais e por diversos meios de comunicação em âmbito nacional e internacional. Em recente comunicado de abril de 2008, o Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas (ONU) elogiou o PBF por ser uma proposta que tem conseguido atacar um problema antigo no Brasil – a fome. Outros estudos realizados destacam que o programa representa um apoio significativo, garantindo alimentação mínima a muitas famílias pobres (Weissheimer, 2006). Na análise de Maria Ozanira Silva e Silva, Maria Carmelita Yazbek e Geraldo di Giovanni, o PBF possui um significado real para os(as) beneficiados(as), uma vez que, para essas famílias, o programa é a única possibilidade de obtenção de uma renda (Silva e Silva; Yazbec; Giovanni, 2004, p. 212).

No que tange à quantidade de pessoas beneficiadas e à qualidade do benefício, o PBF constitui-se, de fato, um avanço com relação aos programas que o antecederam. Todavia, ao analisá-lo sob a perspectiva dos direitos humanos, o programa ainda apresenta uma série de limites. Nesse ensaio, serão enfatizados quatro pontos que merecem reflexão crítica (2).

Além dos números

A maior debilidade do PBF (3) dá-se pelo fato de o programa não ser baseado na concepção de direitos, haja vista que o acesso não é garantido de forma incondicional aos sujeitos de direito. Em outros termos, o PBF não garante o acesso irrestrito ao benefício, já que existe uma determinação da quantidade de famílias (estimativa de pobres) a serem beneficiadas em cada município. Essa limitação ocorre em virtude de o governo federal estabelecer, em cada município, um número máximo de famílias a serem contempladas (4).

A partir do momento em que esse número é preenchido, fica “impossibilitada” a inserção de novas famílias, mesmo que sejam extremamente vulneráveis e, portanto, portadoras desse direito. Em decorrência disso, as famílias e pessoas pobres acabam não sendo incluídas (5) no programa, mesmo que tenham a necessidade urgente de serem beneficiadas.

Em virtude do limite, faz-se necessário que o PBF supere o estabelecimento de um número e atenda a todas as pessoas que se enquadrarem nos critérios de elegibilidade. Sob a ótica dos direitos, essas pessoas deveriam ter a possibilidade de reclamar e requerer o benefício e serem contempladas pelo programa em um curto período de tempo. Caso o benefício ainda não seja concedido, deve haver a possibilidade de o mesmo ser requerido judicialmente.

Universalização e condicionalidades

O Bolsa Família impõe contrapartidas e condicionalidades para o recebimento do benefício: acompanhamento de saúde e do estado nutricional das famílias, freqüência escolar e acesso à educação alimentar. A exigência de condicionalidades tem o apoio implícito do Banco Mundial, que vê nesse tipo de proposta uma inovadora forma de assistência social na América Latina.

Sob a ótica dos direitos humanos, a um direito não deve haver a imposição de contrapartidas, exigências ou condicionalidades, uma vez que a condição de pessoa deve ser o requisito único para tal titularidade. Para Chantal Euzéby (2004), essa estratégia obedece à lógica punitiva, incorporando a idéia de que o beneficiário público torna-se um devedor da sociedade, pois parte-se do princípio que não existiria direito sem obrigação (Euzéby, 2004, p. 37).

Claus Offe (1995) compartilha o mesmo argumento, destacando que as políticas sociais com condicionalidades e contrapartidas, operando a partir de meios educacionais e punitivos, pretendem moldar cidadãos e cidadãs “competentes” e “operantes”. Esse tipo de proposta é classificada como autoritária, pois visa moldar as pessoas para o cumprimento de determinadas virtudes.

Para Clauss Offe (1995), os defensores das condicionalidades não são capazes de propor a punição do Estado quando do não-cumprimento e provimento dos serviços públicos aos(às) portadores(as) desses direitos, mas enfatizam a “punição” às pessoas pobres. Assim, na perspectiva dos direitos, a obrigação do cumprimento das condicionalidades (garantir escolas, postos de saúde etc.) é de responsabilidade dos poderes públicos, e não da população (6).

Diante disso, o PBF não deveria impor condicionalidades e obrigações aos(às) beneficiados(as), pois a titularidade de um direito não deve ser condicionada. O Estado não deveria punir e, em hipótese alguma, excluir titulares do programa quando do não-cumprimento das condicionalidades estabelecidas e/ ou impostas. Seguindo as sugestões de Claus Offe (1995), dever-se-ia punir os municípios, estados e outros organismos governamentais pelo não-cumprimento de suas obrigações em garantir o acesso aos direitos, atualmente impostos com condicionalidades.

Se levarmos o princípio da universalidade em consideração, isto é, que os programas sociais brasileiros sejam desenhados, formulados e concebidos de forma universal e irrestrita, nos quais a condição de pessoa seja o requisito único para o aferimento de um direito, há de se pensar na transição do PBF para a Renda Básica de Cidadania, ora aprovada em lei. A Renda Básica de Cidadania pode garantir mais facilmente mecanismos de acessibilidade e justiciabilidade. Estaríamos, dessa forma, seguindo as determinações da III Conferência de Segurança Alimentar e Nutricional (Consan), realizada em julho de 2007, em Fortaleza, que aprovou diretriz que estabelece essa transição.

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Valor do benefício

Estudiosos dos programas de transferência de renda no Brasil concordam que o valor repassado ao público beneficiado pelo PBF é muito baixo para atender às necessidades mínimas com alimentação. Diante desse quadro, propõese como critério para a avaliação das políticas públicas de transferência de renda o custo da Cesta Básica Nacional.

No caso do Brasil, o Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese) acompanha mensalmente a evolução de preços de 13 produtos de alimentação, assim como o gasto mensal que uma pessoa teria para comprá-los. As pesquisas do Dieese avaliam de quanto um(a) trabalhador(a) em idade adulta precisa para satisfazer as necessidades alimentares mínimas.

A Cesta Básica Nacional calcula o sustento e o bem-estar de uma pessoa em idade adulta, contendo quantidades balanceadas de proteína, caloria, ferro, cálcio e fósforo. De acordo com esse parâmetro, os valores dos programas de transferência de renda, a exemplo do PBF, deveriam ter como critério o custo dessa cesta.

Contudo, o programa não segue o parâmetro do Dieese, sendo insuficiente o valor repassado para garantir uma alimentação adequada para as famílias brasileiras. A pesquisa da Cesta Básica Nacional, realizada em março de 2008, em 16 capitais do Brasil, considera que um(a) trabalhador(a) individual em idade adulta necessitaria do valor equivalente a R$ 223,94, na cidade de São Paulo, e de R$ 166,13, em Recife, para satisfazer as necessidades alimentares mínimas. O valor da cesta, segundo o Dieese, seria suficiente para o sustento de uma pessoa em idade adulta nessas cidades. O PBF deveria, no mínimo, conceder um benefício cujos valores fossem equivalentes aos da Cesta Básica Nacional.

Exigibilidade administrativa

O programa deveria ser provido por órgãos ou instituições nos municípios com determinações de responsabilidades transparentes e bemdefinidas, cuja finalidade é a de facilitar não somente o acesso das pessoas ao programa, mas também a possibilidade de as famílias solicitarem reparação, melhor dizendo, exigirem o mesmo perante órgãos governamentais.

Até o presente momento, o PBF não garante mecanismos de acessibilidade universal, principalmente para os sujeitos de direito requererem seus direitos quando violados e/ ou não-garantidos. Além disso, devem existir informações e órgãos públicos a serem recorridos em caso de solicitação de violação ao acesso e/ou em caso de interrupção. Essas informações devem estar disponíveis de forma clara e acessível aos sujeitos de direito, principalmente às pessoas mais vulneráveis, o que não vem ocorrendo.

Nesse sentido, deveriam ser estudadas formas de instituição imediata de instrumentos que garantam a exigibilidade administrativa dos direitos dos(as) titulares do PBF. Caso o benefício ainda não seja concedido, deve haver a possibilidade de requisição judicial. Do ponto de vista dos direitos, quanto mais fácil o acesso ao programa, maior será a realização dos direitos. Em virtude disso, dá-se grande importância aos mecanismos de exigibilidade e justiciabilidade.

Entraves e sugestões

Com relação aos programas sociais anteriores, o PBF representa um avanço significativo no combate à fome no Brasil, possibilitando uma melhoria na alimentação de muitas famílias pobres. Todavia, sob a ótica dos direitos, o referido programa ainda apresenta uma série de entraves. Sob essa perspectiva, deve-se considerar que a um direito humano não deve haver a imposição de contrapartidas, exigências ou condicionalidades. Mais grave do que a exigência de contrapartidas é a punição de um(a) portador(a) de direito, sobretudo a exclusão de titulares pelo não-cumprimento das condicionalidades. Isso se constitui numa grave violação aos direitos humanos, uma vez que um direito humano não pode estar atrelado ao cumprimento de exigências e outras formas de conduta.

Além das condicionalidades, o valor do benefício auferido pelo PBF é insuficiente para garantir que todas as pessoas beneficiadas estejam livres da fome. Em outros termos, o montante financeiro transferido pelo programa é insuficiente para garantir o direito a uma alimentação adequada, principalmente no que tange à provisão da quantidade mínima de alimentos.

Além de aumentar o valor monetário, o programa deveria procurar garantir mecanismos de acessibilidade com claras referências dos órgãos públicos responsáveis pelo seu provimento. A acessibilidade significa que todos os sujeitos de direito possam ser incluídos no programa quando seus direitos estão sendo violados ou não estão sendo garantidos. Na concepção dos direitos humanos, os direitos devem ser de fácil acesso, os cidadãos e as cidadãs devem ter a possibilidade de requerer o benefício e serem contempladas pelo mesmo num curto período de tempo. Caso o direito não seja concedido, deve haver a possibilidade de que o mesmo seja requerido judicialmente.

Por último, se levarmos o princípio da universalidade em consideração, isto é, que os programas sociais brasileiros sejam desenhados, formulados e concebidos de forma universal, irrestrita, em que a condição de pessoa seja o requisito único para o aferimento de um direito, há de se pensar na transição do PBF à Renda Básica de Cidadania, ora aprovada em lei. A Renda Básica de Cidadania pode garantir mais facilmente mecanismos de acessibilidade e justiciabilidade. Estaríamos, dessa forma, seguindo as determinações da III Conferência de Segurança Alimentar e Nutricional (III Consan), realizada em julho de 2007, em Fortaleza, que aprovou uma diretriz que estabelece essa transição.

1 O Reino Unido introduziu programas de transferência de renda em 1948; a Finlândia, em 1956; a Suécia, em 1957; a Alemanha, em 1961; a Áustria em 1974; a França, em 1988. Com relação a muitos países, o Brasil iniciou tardiamente o processo de implantação de políticas de proteção social não-contributivas.
2 As críticas aqui apresentadas visam contribuir para o aperfeiçoamento do programa, já que as experiências nacionais e internacionais mostram o quão importante são os programas de transferência de renda no combate à fome, pobreza e desigualdade social e na garantia do direito à alimentação adequada.
3 A própria denominação bolsa apresenta sérios problemas sob a ótica dos direitos humanos, pois uma bolsa indica algo temporário, passageiro, que possui prazo para terminar, sem levar em conta a situação de vulnerabilidade das pessoas. Um direito não pode ser concebido na forma de uma bolsa, temporariamente, mas como algo permanente, a ser auferido enquanto houver um quadro de vulnerabilidade ou exclusão social.
4 Alguns municípios têm complementado esse número com programas de transferência de renda próprios.
5 Atualmente, 11 milhões 129 mil 327 famílias (dezembro de 2007) são beneficiadas pelo PBF. Por outro lado, segundo informações do sítio do Ministério do Desenvolvimento Social, em dezembro de 2007, havia 15 milhões 159 mil 855 famílias inscritas no Cadastro Único com renda per capita inferior a R$ 120, ou seja, famílias que cumpriam os requisitos de elegibilidade do programa. Isso significa que 4 milhões 30 mil 528 famílias não foram incluídas, embora se enquadrem nos critérios de elegibilidade do programa.
6 Há casos em que não existem escolas ou postos de saúde nas proximidades da moradia. Numa situação assim, fica impossibilitado o próprio cumprimento das condicionalidades, pois o Estado nem mesmo oferece os serviços aos quais exige que os(as) beneficiados(as) tenham acesso.

Mots-clés

sécurité alimentaire, pauvreté, lutte contre la pauvreté, politique sociale, revenu minimum


, Brésil

dossier

Sécurité alimentaire, revenu et politiques publiques au Brésil : le programme Bolsa Familia en question

Notes

REFERÊNCIAS

ESPING-ANDERSEN, G.. The three worlds of welfare capitalism. Cambridge: Polity Press, 1990.

EUZÉBY, C.. “A inclusão social: maior desafio para os sistemas de proteção social”. In: SPOSATI, Aldaiza (Org.). Proteção social de cidadania: inclusão de idosos e pessoas com deficiência no Brasil, França e Portugal. São Paulo: Editora Cortez, 2004. p 33-55.

OFFE, C.. Capitalismo desorganizado: transformações contemporâneas do trabalho e da política. 1. reimpressão. São Paulo: Brasiliense, 1995.

SILVA e SILVA, M. O.; YAZBEK, M. C.; GIOVANNI, G. di. A política social brasileira no século XXI: a prevalência dos programas de transferência de renda. São Paulo: Cortez, 2004.

ULLRICH, C.. Soziologie des wohlfahrtstaates. Eine einführung. Frankfurt: Campus, 2005.

WEISSHEIMER, M. A.. Bolsa Família: avanços, limites e possibilidades do programa que está transformando a vida de milhões de famílias no Brasil. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2006.

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