“Era uma vez um agricultor que cultivava soja no Rio Grande do Sul e que foi à cooperativa para comprar sementes de soja convencional. Ele, definitivamente, não queria sementes de soja transgênica, mesmo que até 90% da soja cultivada pelos demais gaúchos seja geneticamente modificada. Não havia sementes para pronta entrega mas, após muito procurar e perguntar, ele as conseguiu.
O agricultor plantou e colheu. E como ficou feliz! Em cada etapa, ele agia com extremo cuidado de modo que não houvesse contaminação com a soja transgênica de seus colegas. No final do trajeto, a cooperativa recebeu sua soja e fez os controles habituais com o kit de teste da Monsanto. Positivo! “O senhor usou sementes de soja Roundup-Ready e terá que pagar uma multa de R$ 1,50/saca (ao invés dos R$ 0,60, a título de ‘royalties’) para Monsanto.” O agricultor ficou perplexo. O choque foi tão grande quanto o de alguém que acaba de ouvir que é HIV positivo. O tratamento dado ao agricultor anti transgênico circulou como um rastilho de pólvora. Com medo de também serem obrigados a pagar R$ 1,50/saca, todos os agricultores declararam sua soja transgênica, mesmo aqueles que usaram sementes de soja convencionais.
O agricultor não se conformou e, com um amigo engenheiro agrônomo, voltou à cooperativa. Eles exigiram um novo teste e – vejam só: deu negativo! O técnico havia interpretado o resultado erroneamente
Sua própria cooperativa estava fazendo o jogo da Monsanto. Será que ela se vendeu ou ela parte do pressuposto de que toda soja do Rio Grande do Sul é, automaticamente, transgênica?” (1)
‘Era uma vez…’
Parece um conto de fadas, mas não é: desde 1996 este é o pesadelo de agricultores norte-americanos e canadenses que não querem participar do jogo. Alguns deles ficaram arruinados em processos movidos contra a gigante da indústria química, Monsanto. No ano de 2004, esta possibilidade tira o sossego de muitos agricultores brasileiros que plantam soja mas querem se manter independentes dos gigantes das indústrias de sementes, químicas e de manipulação genética.
Neste mesmo ano de 1996, o agricultor Arns contrabandeou – ilegalmente – sementes de soja transgênica da Argentina para o Brasil. Ano após ano, aumentava o número de lavouras plantadas ilegalmente com soja transgênica. Eles forçaram o governo Lula a declarar ‘legal’ a safra ilegal de 2003 e 2004. Secretamente, Monsanto se divertia e deixava o barco correr, até que não houvesse mais a possibilidade de retorno fácil. A partir da safra 2003-2004, os agricultores tiveram que pagar ‘royalties’: R$ 0,60/saca de 60 kg. Para a safra 2004-2005, este valor já será o dobro: R$ 1,20/saca, mesmo que as sementes não tenham sido adquiridas deles. A meta final é exigir 10% do valor da soja a título de ‘royalties’. No último ano, o preço de fertilizantes e agrotóxicos subiu como um foguete enquanto, desde maio de 2004, o preço da soja está em rota descendente.
Lucro para o agricultor? Nos primeiros anos, sim. Depois disso: esqueça! Monsanto bate à sua porta enquanto o aumento na produtividade, após alguns anos, começa a reduzir.
Europa
Por que foi mesmo que Wervel escreveu uma ‘Carta Aberta’ ao então Ministro da Agricultura Belga Karel Pinxten? Primavera de 1996: “Sr. Ministro, atualmente planta-se nos EUA a soja Roundup-Ready. Em novembro chegará o primeiro navio na Antuérpia. O que o senhor fará, Sr. Ministro?” Nunca recebemos uma resposta, mas no ‘Dia Mundial da Alimentação’ – 16 de outubro – daquele mesmo ano, Wervel aproveitou a oportunidade para levantar a questão da chegada da soja transgênica com uma manifestação em frente ao Edifício Berlaymont, da Comissão Européia. “Sr. Delegado na Comissão, Sra. União Européia, o que os senhores pretendem fazer?”.
Algumas semanas depois, manifestantes do Greenpeace se acorrentaram ao primeiro navio com soja transgênica, que aportou na Antuérpia. Imediatamente tornou-se manchete internacional. Desde então, os transgênicos continuam a provocar agitação entre os consumidores europeus.
Paraná
Julho de 2004: está ficando claro que o governo federal irá liberar os transgênicos. Há mais de um ano, está em curso – aqui – uma guerra em torno dos transgênicos, obviamente do governo contra os movimentos ambientais, Fetraf, MST e uma série de outras organizações. Mas também entre o governo do estado do Paraná e o Ministro da Agricultura Roberto Rodriguez. O governador Roberto Requião e seu irmão Eduardo (superintendente do porto de Paranaguá) se mantêm firmes. Belos ‘outdoor’s’ foram espalhados em todo o Paraná:
“Se Paranaguá tivesse exportado soja transgênica, o Brasil teria pago US$ 60.000.000 em royalties para a Monsanto em 2003. Mais lucro para o agricultor”.
Será que o conto de fadas irá se tornar num pesadelo completo, agora que os preços começaram a baixar e os custos a subir?
Agosto: Fetraf-Sul/CUT publica sua cartilha sobre soja social e ecologicamente (mais) sustentável. Afinal, a soja está aí, herança da ‘Revolução Verde’, desde a década de 60. Os agricultores, aqui, tornaram-se dependentes dela, mas esta dependência pode ser transformada numa independência inovadora e criativa: cultivar soja dentro de critérios previamente pactuados. Produzir soja não-transgênica é, obviamente, um dos critérios da alternativa que a agricultura familiar pretende construir e oferecer. Ela busca também o processamento próprio na ‘agroindústria familiar’, com produtos de soja para consumo humano e animal.
Bretanha
No Brasil, ‘Europa’ continua sendo um fator importante na guerra contra os transgênicos. No final de agosto – início de setembro, uma delegação oficial da França visitou o Paraná: Pascale Loget, vice-presidente da Bretanha e René Louail, presidente do sindicato rural francês ‘Confédération Paysanne’ [Confederação da Agricultura Familiar] (também representando a ‘Europese Boerenvereniging’ – CPE [Coordenadora Agrícola Européia – www.cpefarmers.org], membro da Via Campesina) visitam o governador Requião, o porto e diversos elos da cadeia produtiva da soja do estado. Bretanha detém 50% da pecuária intensiva da França (principalmente aves e suínos). Além disso, 80% dos franceses são contra produtos geneticamente manipulados. Bretanha pretende se declarar área livre de transgênicos a partir de 1o de outubro de 2004. A Áustria pretende seguir este exemplo e comprar soja somente do Paraná (2).
Os visitantes e os anfitriões têm, portanto, muitos ases nas mãos. Será uma interessante negociação político-econômica, com grande impacto em ambos os lados do oceano.
Se no plano federal a guerra política, por enquanto, está perdida, nos estados e na economia ainda há muitas batalhas que podem ser ganhas. E de baixo para cima.
Do campo à mesa. No Brasil e na Europa. A Igreja Católica Brasileira também está envolvida na luta. Na Romaria da Terra (3), de agosto de 2004, agricultores queimaram sementes que os tornavam dependentes da agroindústria. Aparentemente a mensagem causou um forte impacto, porque a Monsanto – imediatamente – usou chumbo grosso na imprensa: “A Igreja tem a obrigação de informar as pessoas ‘objetiva’ e ‘cientificamente’. Não devem escolher partido.”
A Igreja tem a obrigação de informar as pessoas ‘objetiva’ e ‘cientificamente’. Não devem escolher partido…
Como assim?
soja, OGM et agriculture, multinationale, agriculture d’exportation, industrie chimique
, Brésil
Navios que se cruzam na calada da noite: soja sobre o oceano
Alternativa para a Agricultura Familiar: Soja produzida com critérios de sustentabilidade social e ecológica
Sexta-feira, 20 de agosto, foi dado um importante passo pelo Sindicato de Trabalhadores Rurais Fetraf-Sul/CUT, no sul do Brasil. Após um intenso processo de discussão interna em nove cooperativas de agricultores, começou a ser distribuída uma bela pasta de apresentação, na qual cada encarte apresenta uma cooperativa – com seus números e forma de produção (de acordo com critérios previamente pactuados).
Elas representam 521 famílias que produzem 5590 toneladas de soja orgânica; 5736 famílias com 146.067 toneladas de soja convencional. No total, envolve 63.012 hectares de terra.
A publicação de Fetraf foi editada em português e inglês. A publicação foi viabilizada com colaboração de Solidaridad e Stichting DOEN [Fundação DOEN], da Holanda. A partir de 15 de setembro, a versão em inglês pode ser adquirida junto a Solidaridad. Em Flandres, pode ser obtida junto a Wervel, mediante pagamento de despesas de correio:
Vooruitgangsstraat 333, B-1030 Bruxelas, Bélgica; 0032 (0)2/ 203 60 29; info@wervel.be.
No Brasil: Fetraf-sul, Rua Duque de Caxias, 131D, Chapecó-SC - CEP 89802-410 secgeral@fetrafsul.org.br
Esse texto foi tirado do livro « Navios que se cruzam na calada da noite : soja sobre o oceano » de Luc Vankrunkelsven. Editado pela editora Grafica Popular - CEFURIA en 2006.
Livre
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