O desafio do desenvolvimento local com protagonismo comunitário
04 / 2007
A criação de uma Agência de Desenvolvimento Local sob gestão de organizações comunitárias, em Cidade de Deus, no Rio de Janeiro, é hoje um dos esforços marcantes, no contexto brasileiro, na criação de novos caminhos de desenvolvimento capazes de superar a discriminação e a exclusão social em bairros críticos de grande cidades.
Cidade de Deus é um bairro situado na zona oeste do Rio de Janeiro, originário de um processo de remoção de favelas ocorrido em 1966. Hoje com uma população em torno de 50 mil habitantes, Cidade de Deus apresenta indicadores sociais entre os mais críticos do Rio de Janeiro, embora situado na vizinhança de um dos “bairros nobres” da cidade, a Barra da Tijuca.
Em 2002, o sucesso do filme “Cidade de Deus” colocou o bairro intensamente nos veículos de comunicação, reforçando o estigma de comunidade violenta e perigosa e favorecendo uma onda de preconceito e discriminação.
Por outro lado, na sua trajetória desde a década 80, surgiram no bairro várias associações de moradores, agremiações de samba, agremiações esportivas, grupos de teatro, revistas, cine-clubes, igrejas atuantes, grupos de dança e movimento negro.
A partir de 2003, vários processos confluíram, constituindo novas condições de organização e articulação tendo em vista a transformação da realidade da Cidade de Deus. Após um processo intensivo de discussões, surgiu naquele ano o Comitê Comunitário de Cidade de Deus, que veio a reunir diferentes entidades locais tendo em vista superar o isolamento e as divisões que pautavam a atuação dessas organizações.
O Comitê Comunitário firmou-se ao longo de seus três anos de existência como espaço relevante de articulação de ações no bairro e de interlocução institucional. Já em 2004, sua atuação produziu duas importantes realizações:
a) um levantamento inicial das demandas da população local que incluiu temas como Trabalho, Emprego e Renda, Educação, Saúde, Meio Ambiente, Promoção Social, Comunicação, Cultura e Esporte;
b) a elaboração de um primeiro Plano para o Desenvolvimento de Cidade de Deus, referendado por um fórum comunitário ampliado, com diretrizes traçadas para um período de cinco anos (até 2009), como instrumento para avançar na direção da articulação de programas, projetos e ações sociais em andamento no bairro, bem como da implantação de novas iniciativas em benefício da comunidade.
A partir desses acúmulos, um dos desafios colocados foi a consolidação, em um novo patamar, do arranjo socioinstitucional que amadureceu nos últimos anos, com destaque para a formação de uma instância executiva capaz de integrar ações e projetos no território, na forma de uma pessoa jurídica (a Agência Cidade de Deus de Desenvolvimento Local), entendida como fator-chave de sustentabilidade de todo o processo.
Em 2006, a Agência constituiu-se legalmente como uma entidade sem fins lucrativos, tendo como associados e dirigentes as organizações e lideranças ligadas ao Comitê Comunitário. Este fato, por si só, representa um resultado expressivo do processo de organização e articulação levado a cabo nos três últimos anos. A concretização desta Agência efetivou-se a partir do apoio técnico e financeiro de um órgão do governo federal (Finep – Financiadora de Estudos e Projetos) e de uma organização da sociedade civil (Ibase – Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas), o que representa também um exemplo da capacidade de interlocução institucional da comunidade local.
Diretamente imbricado com a constituição da agência de desenvolvimento, um conjunto de realizações e resultados já podem ser destacados, notadamente a partir do ano de 2006. Entre estes, incluem-se ações integradas em diferentes áreas, como:
Capacitação dos gestores locais. Formação conceitual e gerencial dos próprios agentes envolvidos no Comitê Comunitário e na Agência de Desenvolvimento, mediante cursos com metodologias participativas.
Trabalho e economia solidária. Identificação de potencialidades para criação de cooperativas, ciclo de formação com trabalhadores e moradores e, como desdobramento próximo, a criação de um empreendimento associativo e autogestionário na área de construção civil.
Educação. Mobilização e coordenação entre as instituições locais e parceiras para debater a qualidade da educação na Cidade de Deus e construir um plano integrado para a área com participação da comunidade e abrangendo os diversos níveis de ensino.
Habitação social. Como ação de maior impacto social, destaca-se o projeto habitacional que atenderá 618 famílias atualmente sem condições mínimas de moradia, na área de Cidade de Deus denominada Rocinha II. Tal projeto está sendo conduzido com participação direta da comunidade local, a partir do Comitê Comunitário e da Agência, e sua concretização liga-se ao apoio de um órgão público federal de fomento, a Caixa Econômica Federal, e da Prefeitura do Rio de Janeiro.
Comunicação. Como eixo alimentador de todo esse processo, está ainda em constituição, no âmbito da agência, um sistema de comunicação interna e externa que envolve diversos componentes integrados – programa em rádio comunitária, produção de vídeos, site e jornal comunitário.
As ações da Agência terão como lastro social mais abrangente os encontros semestrais do Fórum Comunitário de Cidade de Deus, que envolverá centenas de atores do bairro (ligados a diferentes movimentos e organizações), para reorientar as grandes linhas e prioridades do plano de desenvolvimento local na Cidade de Deus.
Trata-se, enfim, de um arranjo socioinstitucional que se propõe a operar uma gama integrada de projetos e ações, tendo Cidade de Deus como base de referência territorial e considerando sua articulação com os bairros adjacentes e com a cidade.
Em termos mais amplos, o caso de Cidade de Deus remete ao problema-chave do enfrentamento da desigualdade e da exclusão social, em comunidades populares empobrecidas, muitas vezes estigmatizadas e historicamente sujeitas, quando não ao abandono, a mecanismos políticos de fragmentação e dominação. A trajetória da Cidade de Deus é emblemática desse problema, e os caminhos que ali se abrem para seu enfrentamento, além dos benefícios para seus próprios habitantes, podem fornecer indicações para outros territórios com características comuns, especialmente em contextos metropolitanos.
développement local, bidonville, action communautaire, participation communautaire, association d’habitants
, Brésil, Rio de Janeiro
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Este artigo está disponível no blog: Boletim Internacional de Desenvolvimento Local Sustentável.