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diálogos, propuestas, historias para una Ciudadanía Mundial

Recuperação e conservação da agrobiodiversidade: caminho à autonomia dos agricultores familiares

Ivan José Canci

07 / 2010

Introdução (1)

A produção de alimentos nas unidades familiares pertencentes às comunidades camponesas, garante mais autonomia aos agricultores, é fonte de autoestima e gera desenvolvimento local e cidadania. A perda da diversidade nas lavouras, coincide com a perda da diversidade nos pratos, bem como com à perda e desvalorização dos conhecimentos informais de domínio dos camponeses.

A recuperação e valorização da agrobiodiversidade como estratégia de geração de qualidade de vida no espaço rural e de manutenção deste patrimônio genético para as gerações futuras, passa pela manutenção das condições socioeconômicas rurais e locais. Isto significa que sem a agricultura familiar e as comunidades tradicionais, não teremos agrobiodiversidade no futuro, o que poderá comprometer a alimentação adequada de toda a humanidade.

Monocultivos, miúdezas e grandezas

Até pouco tempo, a disseminação da proposta de que os agricultores teriam que eliminar as culturas chamadas “miudezas” (aquelas para autoconsumo) era uma verdade quase que incontestada. O argumento dos arautos da monocultura era de que as miudezas, por nós chamadas de “grandezas” somente ocupavam mão de obra familiar, não gerando renda e lucro.

Por conta dessa doutrina e de toda a imposição da parafernália da agroquímica, o grande impacto negativo no estoque milenar de agrobiodiversidade aconteceu a partir das políticas de modernização da agricultura, implementadas em diversas regiões do planeta, sobretudo no século XX, e a partir do terço final deste mesmo século no extremo oeste catarinense. Estimativas indicam que por conta das alterações abruptas dos ecossistemas naturais e agrícolas, no último século perdeu-se de 50% a 90% da agrobiodiversidade então existente em cultivo (Mulvany & Berger, 2003). Pode-se comprovar que apesar da agricultura ter apenas meio século na região oeste catarinense, os efeitos dessas políticas também foram desastrosos para a agrobiodiversidade regional. Qualquer conversa com agricultores(as) com mais de 70 anos de idade, leva à informação de que perdeu-se diversidade de espécies, mas principalmente perderam-se variedades de plantas e raças de animais. Outro agravante é que a grande maioria das espécies remanescentes ocupa pequenas áreas, que ainda são marginais e, possivelmente, já encontra problemas de estreitamento da sua base genética.

Essa visão estreita e equivocada de que o agricultor deve obter renda de uma ou duas atividades apenas e assim comprar na cidade o alimento que consome já está perdendo força. Constata-se em toda a região, inclusive pelos planos das associações de desenvolvimento das microbacias, que produzir comida em abundância e com qualidade está voltando a ser prioridade para muitos agricultores(as). Acontece que mesmo perdendo força pela crise de legitimidade que atravessa a proposta da monocultura ainda é hegemônica nas cabeças de técnicos, agricultores e em todo o complexo do grande agronegócio que foi pensado dentro de suas premissas. Pat Roy Mooney (2002), cientista e ativista de renome mundial, estimou que a perda anual de variedades de cultivos agrícolas estava na ordem de 2%, enquanto com as raças de animais crioulos seria ainda mais grave, da ordem de 5%. Desde então, houve a invasão dos transgênicos em muitos países, inclusive aqui em nossa região. Pelas informações já disponíveis, já podemos imaginar qual o seu impacto na agrobiodiversidade regional e mundial!

Dentro dessa realidade que agrega a necessidade de alimentação em quantidade e qualidade para todos, a diminuição de custos de produção e a conservação da agrobiodiversidade prioritariamente nas mãos dos agricultores familiares, a busca por propostas de desenvolvimento rural que promovam a restauração da diversidade biológica passam a ganhar força e tendem a crescer muito nos próximos anos. É importante destacar que um dos panos de fundo dessas experiências e preocupações é a geração de mais autonomia às comunidades rurais e ao próprio desenvolvimento local.

Por isso, o kit diversidade é uma proposta importante, que se articulada dentro de um projeto local de recuperação da segurança alimentar, e que apoiará decisivamente a promoção e a recuperação da agrobiodiversidade e, consequentemente, o fortalecimento dos sistemas informais de intercâmbio de recursos genéticos e conhecimentos.

Mais agricultores: mais diversidade e alimentos

Sem as diversas formas de agricultura camponesa, dentre as quais as de base familiar ainda predominantes no extremo oeste catarinense, não existiria agrobiodiversidade na região. De acordo com isso, Carvalho (2003) afirmou que as regiões com predominância da agricultura familiar e indígena (populações tradicionais) foram as que usaram e conservaram a maior parte da agrobiodiversidade em nível mundial. A cada família de agricultor que deixa o campo, a cada “fazenda de bovinos” ou grande monocultivo que surge abocanhando diversas unidades familiares, desaparece um pouco da agrobiodiversidade e enfraquecem-se as redes locais de troca e com elas os sistemas de conhecimento informal. Por esse motivo também, a reforma agrária autêntica é necessária: são principalmente os pequenos agricultores que conservam e constroem a agrobiodiversidade.

Um equívoco que o kit diversidade apropriadamente tenta superar é a lógica da revolução verde para a alimentação: diminuição da base alimentar e homogeneização da dieta envenenada e com baixo valor nutricional. Não é por nada que das cerca de 7 mil espécies de plantas usadas na agricultura, apenas cerca de 150 são consideradas importantes do ponto de vista comercial, sendo que somente de três – as commodities trigo, milho e arroz – provêm cerca de 60% das calorias e 56% das proteínas derivadas de plantas em todo o mundo (Cromwell et al., 2003; Thrupp, 2003). Aí está a razão basilar da atual propalada alta de preços dos alimentos: é o interesse privado capitalista que detêm poder sobre o que, quanto e quando o povo pode comer.

Conservar a agrobiodiversidade em posse dos agricultores familiares servindo a estes e ao povo urbano pela oferta de alimentos de qualidade é muito mais que lutar pelas sementes crioulas e, certamente, vai além da promissora experiência do kit diversidade. O que garantirá a existência sustentável dos sistemas de intercâmbio entre agricultores, que são as estruturas principais na garantia das sementes nas mãos das comunidades rurais, será a criação de condições para que estes agricultores ali vivam com dignidade. Mais do que isso, criar condições materiais e simbólicas para que seus filhos e netos venham a sentir honra de serem agricultores e de cultivar alimentos.

Nesse sentido, a ameaça ao conhecimento informal e à conservação das sementes crioulas como lados de uma mesma “moeda”, não se dirige sobre o conhecimento ou às sementes em si, mas sim sobre as condições socioeconômicas e ambientais em que essa “moeda” é produzida e conservada.

Ao ter como estratégia central a disseminação da cultura de se produzir o próprio alimento na unidade e de apoiar os sistemas locais de intercâmbio de sementes e saberes, o kit diversidade atenta para o fato de que as famílias que passam a cultivar o seu próprio alimento ficam mais enraizadas na terra. O brilho nos olhos volta e com ele o desejo de deixar o campo fica mais distante!…

Conclusão

Por optar por trilhos estreitos e insustentáveis a nossa agricultura perdeu o rumo e descarrila ribanceira abaixo. Essa constatação tem como um de seus alicerces a redução da diversidade de cultivos (e de alimentos!) e a transferência de poder (e renda!) dos agricultores para indústria, que confortavelmente trilha caminhos de fartura oligopolista.

A proposta agroecológica e a agricultura familiar camponesa, direta e indiretamente, têm fortalecido a agrobiodiversidade quer seja pela manutenção de um modo de vida (organização social, processos produtivos e de consumo) ou pela recuperação paulatina do significado e da cultura da diversidade. Aí reside um óbvio indicativo de rumo para as políticas de apoio governamentais ou não governamentais: o modelo agroquímico, monoculturista e latifundista deve ser superado. Para o bem de nossos tataranetos. Para o bem da sociedade.

1 Parte do trabalho de dissertação de mestrado do autor.

Palabras claves

biodiversidad, genética, Organismo genéticamente modificado (OGM), agricultura familiar, consumo, autonomía, conocimiento tradicional


, Brasil

dosier

Kit Diversidade: Estratégias para a Segurança Alimentar e Valorização das Sementes Locais (Guaraciaba, Santa Catarina, Brasil)

Notas

Este artigo faz parte de capítulo do livro Kit Diversidade: Estratégias para a Segurança Alimentar e Valorização das Sementes Locais. Organizado por Adriano Canci, Antônio Carlos Alves e Clístenes Antônio Guadagnin (2010). Editora Gráfica McLee - São Miguel do Oeste-SC- Brasil

Fuente

CARVALHO, H.M. de. Sementes: patrimônio do povo a serviço da humanidade (subsídios ao debate). São Paulo: Expressão Popular, 2003. p. 352.

CHAMBERS, R. Notas e reflexões sobre o seminário “agricultores e pesquisa agrícola: métodos complementares”. In: Agricultores experimentadores e pesquisa. Rio de Janeiro: PTA, 1989. p. 1-15.

CROMWELL, E.; COOPER, D.; MULVANY, P. Definiendo la biodiversidad agrícola. In: CIP-UPWARD. Conservación y uso sostenible de la biodiversidad agrícola: Libro de consulta. Los Baños, Filipinas: Centro Internacional de la Papa, 2003. p. 5-13 (Vol. 1: Entendiendo la Biodiversidad Agrícola).

MOONEY, P.R. Erosão, transformação tecnológica e concentração de poder empresarial. São Paulo: Expressão Popular, 2002. p.224

MULVANY, P.; BERGER, R. Biodiversidad agrícola: cuando los agricultures mantienen la red de la viada. In: CIP-UPWARD. Conservasión y uso Sustenible dela Biodiversidad Agrícola: Libro de consulta. Los Baños, Filipinas: CIP,2003. p. 14-21.

THRUPP, L.A. El rol central de biodiversidad agrícola: tendencias e desafíos. In: CIP-UPWARD. Conservación y uso sostenible de la biodiversidad agrícola: Libro de consulta. Los Baños, Filipinas: Centro Internacional de la Papa, 2003. p. 22-35. (Vol. 1: Entendiendo la Biodiversidad Agrícola)

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