Desde 2001, os habitantes da Ilha de Gazirat al-Dhahab no Cairo, Egito, vem sendo pressionados pelo governo para deixarem suas casas a fim de dar espaço a projetos de renovação que os governos estaduais irão prover para o “bem público”. Os habitantes da ilha, no entanto, querem permanecer na terra onde suas famílias têm vivido por mais de cem anos.
Localizada ao lado do Rio Nilo, a Ilha de Gazirat al-Dhahab, ou Ilha de Ouro em português, tem uma população de mais de 20.000 habitantes e possui uma terra bastante fértil usada para agricultura. Apesar da numerosa população da ilha, a única maneira de chegar e sair dela é a faluca, um pequeno barco tipicamente usado no Rio Nilo e no mar Mediterrâneo. Não existem serviços de água e saneamento na ilha, tampouco escolas ou centros de saúde.
Planos de Urbanização para a Ilha
Sob o plano diretor do Cairo projetado para 2050, o governo pretende embelezar a cidade, criar novos espaços verdes em todas as áreas e fazê-la mais atrativa no cenário mundial. A ilha de Gazirat al-Dhahab é um espaço urbano que o governo deseja colocar em “melhor uso”. Embora o “melhor uso” careça de uma definição clara pelo Ministério de Habitação e Serviços Públicos, uma das opções foi vender o solo a um investidor árabe estrangeiro que usaria o espaço para construir instalações turísticas.
O governo justifica o despejo das famílias pela afirmação de que a ilha é de sua propriedade e que não está sendo usada para o “benefício público”. Também promete fornecer pacotes de compensação adequados aos moradores. Para estes, no entanto, lhes parece difícil confiar nas promessas do governo, pois muitas famílias, que desistiram de sua terra em negociações anteriores com o governo, nunca receberam a compensação completa.
A falta de clareza nos planos do Ministério da Habitação e Serviços Públicos para renovar a ilha de Gazirat al-Dhahab levou ao surgimento de uma série de declarações sobre o que deve ser feito. A construção de instalações turísticas, criação de um parque público e até a criação de um parque com resort são todas ideias surgidas para a modernização da ilha. A construção de um parque público poderia corresponder ao fomento do uso positivo do solo da ilha. A ilha de Gazirat al-Dhahab consiste numa grande extensão de terra de baixa densidade populacional. Considerando o crescimento do número de habitantes do Cairo e a expansão da cidade, um plano como este que possibilitasse a permanência dos atuais habitantes na ilha, assim como a continuidade do cultivo da terra, poderia representar uma solução satisfatória tanto para o governo como para os moradores. O governo, no entanto, leva um longo período propondo a expansão de espaços verdes em todo o Cairo, mas os projetos de construção de parques aparentemente sempre fracassam, ao passo que investimentos estrangeiros de grande escala são, ao contrário, favorecidos. A falta de confiança nas promessas do governo é uma das razões centrais porque os moradores de Gazirat al-Dhahab não tem aceitado as solicitações do Ministério de Habitação e Serviços Públicos para deixar a ilha.
Abrindo o debate sobre o direito à cidade
A situação dos habitantes da ilha de Gazirat al-Dhahab atualmente os coloca numa posição vulnerável em função da falta e segurança de posse e seu medo constante pela remoção.
A declaração do governo de que a ilha é uma área protegida e a negação de prover serviços públicos à mesma vem sendo um caminho para reafirmar seu controle sobre Gazirat al-Dhahab e pressionar as famílias a deixá-la. Oficialmente, na condição de “área protegida”, habitantes não são permitidos na ilha, edifícios e casas não podem ser construídos ou reformados e o governo não tem obrigação de fornecer água ou serviço de saneamento.
As famílias naturalmente aumentaram e a expansão doméstica tornou-se uma necessidade. Desde que o governo tornou ilegal o transporte de materiais de construção para a ilha, as famílias também experimentam uma “superpopulação” dentro de suas casas ou optam por contrabandear materiais para a ilha. Isso implica um aumento de custos por uma quantidade menor de materiais de construção que podem ser levados à ilha ou o confisco dos mesmos pelos oficiais e processos legais do governo contra os cidadãos que constroem ou reformam.
As crianças também não recebem formação adequada porque não existe educação formal na ilha. O tempo gasto para que os pais levem e busquem seus filhos à escola na ilha principal resulta na evasão escolar de muitas crianças e sua permanência em casa. Além disso, a falta de acesso ao abastecimento de águapotável e saneamento apropriado, agregado a indisponibilidade de cuidados médicos, vem produzindo muitas mortes que poderiam ter sido evitadas, particularmente as crianças, que são as mais vulneráveis.
A maioria das famílias da ilha de Gazirat al-Dhahab está vivendo lá por mais de um século e agora o governo lhes nega o direito de permanecer na terra que habitam por tanto tempo. Onde irão morar as 20.000 pessoas uma vez removidas da ilha se não são providas de compensações e reassentamentos adequados?
Esse caso oferece a oportunidade de refletir sobre o conceito de direito à cidade. O direito à cidade constitui um processo que envolve diálogo e debate entre governo e cidadãos. Os governos municipais devem valorizar as necessidades e direitos de seus cidadãos ao invés de aplicar diferentes táticas para remover moradores do seu lugar. Como cidadãos do Cairo, não se deve negar aos habitantes de Gazirat al-Dhahab o acesso a água potável, saneamento, educação apropriada para as crianças, qualidade sanitária e moradia adequada. O governo do Cairo precisa ouvir as reivindicações de seus cidadãos e dar-lhes a oportunidade de participar do planejamento de sua cidade, especialmente quando ambos, a terra onde vivem por mais de um século e o seu futuro, estão em jogo.
Oito anos após sua declaração inicial (1), o Ministério de Habitação e Serviços Públicos ainda não tomou posse das terras da ilha. Ainda existe, consequentemente, a oportunidade de criar um projeto urbano que leve em conta os direitos dos cidadãos, incluindo os pobres, para que permaneçam dentro da cidade e sejam envolvidos nos processos que afetam sua subsistência.
Considerações
Se o governo é tão ávido por aumentar os espaços verdes no Cairo por que não permite que os habitantes de Gazirat al-Dhahab permaneçam? Atualmente eles praticam agricultura urbana e produzem verduras de alta qualidade, além de outros produtos alimentícios com os quais se sustentam. Os cultivos da ilha formam parte da identidade de seus habitantes e de sua subsistência. O governo do Cairo está priorizando seu esquema de “embelezamento” orientado ao turismo e os interesses privados ao invés do beneficio aos seus cidadãos mais pobres.
O Centro Egípcio para os Direitos Humanos (Egyptian Centre for Housing Rights – ECHR ), membro da Coalizão Internacional pelo Hábitat (HIC na sigla em inglês), encontrou-se com oficiais do governo para discutir o plano diretor do Cairo e para enfatizar a importância da participação dos cidadãos e da sociedade civil no processo de planejamento urbano. Depois de comparecer a uma conferência ministrada pelo Ministério de Habitação e Serviços Públicos, ECHR sentiu que era tratada de forma antagônica em função de sua interferência no plano e crêem que foram marcados numa lista negra pelo governo, uma vez que é a única ONG que está dando atenção para esta causa.
ECHR também contatou o Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas (United Nations Development Programme – UNDP) e o Banco Mundial (BM), uma vez que ambas as instituições estão envolvidas no desenho e execução do plano diretor do Cairo. Durante um workshop organizado entre o ECHR e o governo, UNDP recusou prover qualquer informação de seu envolvimento. O Banco Mundial, no entanto, tem sido mais aberto à discussão. A expectativa é de que um workshop sobre a responsabilidade do governo em projetos de planejamento urbano realizado em Marrakesh, Marrocos em julho de 2009, pudesse fornecer aos representantes de BM e ECHR a oportunidade de discutir os planos de desenvolvimento urbano do Cairo.
As atitudes e relutância em colaborar expressas por alguns dos principais atores envolvidos no plano diretor do Cairo demonstram que o trabalho de ECHR deve ser apoiado por organizações locais e internacionais, assim como pelo Relator Especial da Organização das Nações Unidas para o Direito à Moradia Adequada, de modo que possam ser criadas estratégias efetivas para que os projetos de desenvolvimento planejados para a ilha de Gazirat al-Dhahab sejam concebidos da melhor forma. Por este motivo em maio de 2009, os membros da HIC e representantes do ECHR visitaram a comunidade de Gazirat al-Dhahab para testemunhar as condições enfrentadas pelos habitantes da ilha e ouvir depoimentos sobre sua luta. Os 50 defensores dos direitos à moradia, líderes comunitários e representantes de 23 diferentes países estavam apreensivos sobre as condições de pobreza em que estão vivendo os habitantes de Gazirat al-Dhahab e chocados com os relatos sobre o que enfrentam como resultado do plano do governo de apropriar-se da ilha. HIC esboçou uma Carta Aberta (2) a ser enviada ao Presidente Mubarak para expressar sua preocupação sobre os projetos urbanos que estão sendo planejados no Cairo e incitar o governo a mudar suas políticas destrutivas que violam e violarão os direitos à terra e à moradia, negando aos cidadãos seu direito à cidade.
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, Egipto
Referências:
Habitat International Coalition, Housing and Land Rights Network, 2009, Open Letter, RE: Egypt’s intended 2050 master plan for Cairo threatens habitat of millions of poor.
The Egyptian Centre for Housing Rights, 2001, Egypt’s Cabinet to Dispossess 155 Thousand People State Property & Public Benefit: State’s Pretexts to Displace Citizens. Website: www.echr.org/en/hc/02/010620.htm
HIC (Habitat International Coalition) - General Secretariat / Ana Sugranyes Santiago Bueras 142, Of.22, Santiago, CHILI - Tel/fax: + 56-2-664 1393, + 56-2-664 9390 - Chile - www.hic-net.org/ - gs (@) hic-net.org