“Obrigado, Pai do Céu”
Brasil é ‘um país de caminhões e de ônibus’. O pára-brisa, os pára-choques ou os pára-lamas da maioria dos caminhões foi decorado com frases religiosas. Às vezes, somente uma palavra ocupa toda a largura do caminhão: ‘Jesus!’ Jesus que auxilia no transporte de soja. Veja só até no que Seu nome é usado!
Eu prefiro o céu
Este outro se dirige ao Pai: “Obrigado, Pai do Céu”. Enquanto ele, aqui na terra, circula com um caminhão de ração a serviço do sistema de produção integrada em Chapecó: para aves, perus e suínos destinados ao mercado mundial. Aves cheias de hormônios ilegais e agricultores presos a um contrato de produção. Ambiente poluído pelo esterco. Seus colegas em Flandres não riem da situação. Eles não conseguem concorrer com estas aves ‘aguadas’, que se desenvolvem tão rápido no hemisfério sul. Um país que conta com boa legislação ambiental, mas cujo cumprimento não é fiscalizado. Na pequena Flandres há muitas normas e eles são constantemente perseguidos pelos fiscais.
“Obrigado. Dirijo meus olhos para o céu. Assim não preciso ver o que estamos fazendo aqui na Terra.” A tradição judaico-cristã, introduzida aqui, é – com freqüência – transformada numa religião sem os pés no chão, mas com os olhos voltados para o céu.
Entretanto, ‘religare’ significa reunir. Reunir-se com homens, com animais, com a natureza, com os elementos. Com o Sagrado. Vida, enraizada na terra. Terra. Com os pés no chão. Os povos originais, indígenas, sabiam o que é a vida terrena. Aqueles que sobreviveram à invasão perderam muito de suas tradições e sua sabedoria. Mas ainda têm lembranças. Aqui e acolá eles reencontram o caminho de volta para a Terra.
Ainda assim, a história da libertação das tradições importadas e a multiforme espiritualidade da natureza podem se enriquecer mutuamente. A história da libertação e o vínculo com a natureza estão interligados.
Mas, por enquanto, são as aves, perus e suínos que são objeto do esforço. Com os olhos voltados para o infinito, em direção ao crescimento. Voltados para a exportação para pagar as dívidas. Ou, melhor dizendo, para pagar os juros.
Soja e transporte?
A maior parte das proteínas é exportada na forma de soja em grão ou farelo de soja. Mas há, com toda razão, uma tendência de manter o valor agregado no próprio país. Por isso: criação de aves, perus e suínos, graças à abundância de soja e milho (1). Para soja a relação é: aves (20% da ração é farelo de soja), perus (30%), suínos (15%). O problema é que todo o processo está nas mãos de poucas empresas: Sadia, Perdigão, Aurora, Doux. Uma história semelhante à que ocorre no outro lado do oceano: em Flandres, uma das empresas que atua no sistema de produção integrada e o maior ‘criador’ de suínos é Danis, que determina os preços deste mercado, o ‘preço Danis’.
Do início ao final da cadeia, o ‘deus soja’, o ‘Ouro Verde’, envolve muito transporte e energia: montagem e importação de máquinas agrícolas, importação de agrotóxicos e fertilizantes que, já na fabricação, exigem uma enorme quantidade de energia; rochas calcárias, que devem ser moídas e calcário que precisa ser transportado centenas de quilômetros para corrigir o solo. Preparo do solo mecanizado: aplicação de herbicidas para dessecar o adubo verde; distribuição do calcário; plantio; aplicação de fungicidas, herbicidas e pesticidas (pode ser feito com aviões no Mato Grosso ou em estados do Nordeste); colheita e semeadura de adubo verde ou aveia/trigo/gramíneas. Transporte por rodovias freqüentemente degradadas pelo tráfego. Durante a colheita e o transporte até o porto ocorre uma perda de 6% (em algumas regiões, com as piores estradas, chega a 8%). Dos portos, os navios partem para a Europa, Japão, China, Índia. Lá ocorre a segunda etapa do transporte, da qual o exemplo mais extremo é a exportação – via aérea – de carne suína da Holanda para o Japão. Alguém tem coragem de fazer o cálculo de toda esta conversão de soja para carne até a destinação final do adubo granulado e do presunto de Parma? Um suíno, em Flandres Ocidental, alimenta-se de soja Roundup-Ready brasileiro-americana da Monsanto. O presunto é transportado de caminhão para a Itália, para ser transformado em presunto de Parma. Este produto ‘de grife’ retorna a Flandres para, em seguida, alegrar os japoneses com esta iguaria artesanal italiana.
Os transportes ferroviário e fluvial seriam alternativas para a Bacia Amazônica?
Na década de 50 do século XX, o Brasil ainda tinha uma rede ferroviária de verdade. Ela foi construída principalmente em virtude do transporte de bens do ciclo econômico anterior: minério, café, açúcar e cacau. A partir da década de 60, optou-se por investir em rodovias. A rede ferroviária foi sucateada e o número de caminhões e ônibus aumentou. Principalmente depois da onda de liberalização na década de 90, muitas estradas de ferro foram abandonadas. Agora, em 2004, quando se comemoram os 150 anos da chegada do trem ao Brasil, há cerca de 7 mil quilômetros de ferrovias abandonadas e em degradação (2). Em todo o território brasileiro há só duas regiões que ainda fazem transporte ferroviário regular de passageiros: Carajás-São Luís e Belo Horizonte-Vitória. Em ambos os casos tratam-se de ferrovias utilizadas intensivamente para o transporte de minério em direção aos portos. Saindo de Curitiba há uma linha turística que serpenteia pela serra, quando não está bloqueada pelos trens de soja. É uma das estradas de ferro mais arrojadas do mundo, construída durante o império de Dom Pedro II. As numerosas pontes foram construídas, em 1865, pelas indústrias do aço belgas.
Enquanto ecologista, sou um grande defensor do transporte ferroviário e marítimo/fluvial. O custo do transporte de trem é quase metade do transporte rodoviário; em embarcações é só 1/3 do custo. Para não falar do custo ecológico muito mais baixo. No Brasil, ninguém parece se preocupar com a poluição sonora provocada pelos caminhões que transitam em áreas residenciais ou de proteção ambiental. Ao longo dos quatro anos em que venho a este país, vi (e ouço!) o transporte rodoviário aumentar exponencialmente (3).
O trem para a China
Mesmo assim… são exatamente trens e embarcações que serão cada vez mais utilizados para acelerar a abertura do país ao mercado mundial. Os chineses compram enormes quantidades de minério de ferro mas, atualmente, vêm também construir estradas de ferro para que o produto chegue de maneira mais eficiente no navio e, portanto, na Ásia. Um megaprojeto ferroviário, que atravessa a região andina, faz parte dos planos. Dinamarqueses, líderes no mercado internacional de carne suína, introduziram um sistema de transporte fluvial no qual grandes ‘chatas’ são empurradas por um barco motorizado pelo rio Amazonas.
No estado do Maranhão, a ferrovia para o porto de São Luís é privada e está nas mãos da ‘Companhia Vale do Rio Doce’. Agora eles vão duplicar a ferrovia para o transporte de soja, lá introduzida em tempo recorde pelos gaúchos. Junto com a ferrovia serão sacrificados 300 mil hectares de terra ao novo deus. Não só a natureza precisa ceder espaço, mas também a população e sua cultura. Há séculos moram nesta região os caboclos, descendentes de índios e portugueses. Assim como nas décadas de 70 e 80 centenas de milhares de pessoas simples foram expulsas do Rio Grande do Sul pela Revolução Verde, assim – atualmente – estes caboclos com sua cultura peculiar estão sendo marginalizados. Eles são ‘amontoados’ pelos cowboys – agora, sojaboys – como troncos de árvores são amontoados pelos tratores de esteira nas margens das lavouras de soja. O trágico é que são justamente as vítimas da ‘revolução’ anterior que – 30 anos mais tarde – atropelam seus semelhantes. Tudo pelo deus ‘dólar’, com seu lema orgulhoso: ‘In God we trust’[Confiamos em Deus].
Não posso fazer nada, mas a imagem dos Judeus que sobreviveram ao holocausto nazista para, em seguida, marginalizar os palestinos, vem a minha mente aqui com freqüência.
soja, transporte, infraestructura del transporte, agricultura de exportación
, Brasil
Navios que se cruzam na calada da noite: soja sobre o oceano
Esse texto foi tirado do livro « Navios que se cruzam na calada da noite : soja sobre o oceano » de Luc Vankrunkelsven. Editado pela editora Grafica Popular - CEFURIA en 2006.
Libro
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