As lutas sociais e políticas na França são intensas e variadas. As questões relativas à moradia – acesso, uso, financiamento, preço –, à sua ligação com a cidade e com os serviços públicos, são elementos estruturantes da vida dos cidadãos e das classes e categorias sociais trabalhadoras e populares. Por isso, os debates e conflitos ligados à questão da moradia aparecem freqüentemente na vida política e social francesa.
Não obstante, a mobilização social pela moradia não é tão importante nem permanente, mesmo tornando-se mais intensa durante os últimos anos.
O paradoxo entre a importância da questão da moradia e a fraqueza relativa das mobilizações sociais se explica observando a história do movimento social e do sistema de moradia popular na França.
Vamos estudar alguns elementos determinantes da ligação entre “questão da moradia” e “movimento social” na França, considerando também a experiência de luta pela moradia no Brasil.
A moradia popular e social na França
Definir a moradia social e os atores do movimento de luta por moradia na França é difícil. Vamos tentar aqui destacar os aspectos mais marcantes e necessários à compreensão da situação atual e das lutas e mobilizações envolvidas.
Podemos considerar três “tipos” de moradia social na França: a moradia social dita “HLM”, a moradia social dita “de fato”, e a moradia social especializada (habitações de trabalhadores imigrantes, de estudantes, de idosos, etc.). Fica a questão do alojamento, assimilada muito freqüente¬mente à questão da moradia por certos atores e que muitos movimentos de luta recusam considerá-la como tal.
A moradia social na França
Existe na França um sistema de moradia social dito “sistema HLM” (“Habitation à Loyer Moderé” ou “Habitação de Aluguel Moderado”), destinado às clas¬ses populares e aos empregados, que recebe auxílios do Estado.
Após a Segunda Guerra Mundial, esse sistema foi criado para alojar a mão-de-obra que trabalhava na reconstrução e na industrialização da França. Em seguida, a moradia social HLM torna-se uma moradia digna e se inscreve numa política de eliminação da moradia insalubre, das favelas e dos pardieiros. Até os anos 1970, a moradia social estava massivamente nas áreas de periferia, agente de renovação urbana e de luta contra a moradia insalubre. É a moradia da população empregada, a moradia fami¬liar alugada de “início na vida”. Em seguida, a moradia social alugada é substituída pela moradia com direito à propriedade (em imóvel coletivo ou em casa individual), e esse fenômeno acentua o povoamento da periferia mais distante, com habitações mais baratas.
Esse sistema é hoje muito formalizado e institucionalizado. É organizado em torno dos “órgãos HLM”, estabelecimentos públicos que geram o setor público da moradia social. Tem hoje 289 órgãos, 4,7 milhões de pessoas alojadas e 2,16 milhões de habitações. Os órgãos públicos HLM são ligados e geridos pelas coletividades locais, pela administração do Estado, pelos parceiros financeiros e sociais e pelos locatários. Paralelamente a esse sistema público se desenvolveram órgãos privados e de economia social de construção e de gestão HLM, as SA HLM. (1)
Esse sistema é estruturado com base em:
Um sistema de financiamento
O financiamento da moradia social é sempre problemático, pois tem de ser feito a longo prazo e com taxas subsidiadas para permitir o acesso às classes populares. Na França, foi a criação de um circuito particular de financiamento, gerido por uma instituição bancária estadual (a Caixa de Depósitos e Consignações – CDC) e com uma taxa subsidiada, que permitiu esse resultado. A CDC financia os promotores de moradia social – os órgãos HLM – com taxas subsidiadas.
A quantidade de habitações sociais construídas a cada ano é função do financiamento existente, do nível de subsídio decidido pelo Estado e da decisão de construir e de solicitar financiamentos pelos órgãos HLM. O custo subsidiado do financiamento aparece no balanço anual nacional.
Os subsídios são destinados à construção de uma serie de categorias de habitações, desde as mais baratas até as “intermediárias”, esses últimas sendo de fato destinadas às classes médias e àqueles que têm salários mais altos.
Esse fato desvirtua pelos menos em parte os objetivos do sistema de moradia social.
Um sistema de subsídio
Não tem moradia social sem subsídios importantes. Na França, os subsídios são principalmente de dois tipos:
–- os “auxílios à pedra” destinados a reduzir o custo do financiamento da construção de habitações sociais. Transitam através dos órgãos HLM;
–- os “auxílios à pessoa” destinados aos locatários e/ou aos compradores de moradia social. São recebidas diretamente pelos moradores, proprietários ou locatários. O Estado fixa cada ano o montante dos subsídios, o seu aumento ou a sua diminuição. Os subsídios subvenções são uma linha do balanço nacional anual.
Destinam-se importantes fundos à moradia social – cerca 1,6% do PIB – mas a crise se agrava de maneira sistemática.
A tendência atual favorece o acesso à propriedade, e o sistema de revisão anual penaliza os desempregados e empregados precários.
Durante os últimos anos uma parte cada vez mais importante da contribuição orçamental do Estado ao setor da moradia usa a forma de deduções de impostos ou de redução do imposto de renda, sobretudo quando o cidadão decide destinar fundos à construção de habitações.
As deduções fiscais são também uma forma de financiamento para o sector da habitação. Todavia, esse financiamento não é destinado de fato às moradias das classes populares e favorece de preferência a construção privada de habitações para a classe média. Por outro lado, é um elemento da bolha especulativa: contribui para o aumento dos preços e para a escassez das habitações. A construção das habitações HLM para as classes trabalhadoras se torna assim mais difícil ainda.
Um sistema de atores
Uma das características principais do “sistema HLM” na França é que a promoção da moradia social está a cargo dos “órgãos HLM”: órgãos públicos, sociedades anônimas e sociedades cooperativas. É uma rede de várias centenas de estruturas jurídicas diversas. Os municípios são atores políticos centrais desse sistema.
Um sistema de ordenamento urbano
As habitações sociais, coletivas e individuais, são um elemento importante na organização do espaço territorial das cidades francesas e das regiões metropolitanas (2).
A região metropolitana de Paris
Após a Segunda Guerra Mundial, e até 1975, várias centenas de milhares de habitações sociais foram construídas na região parisiense, principalmente na “cinta vermelha” das cidades comunistas no Norte e no Leste, nas proximidades da periferia parisiense. A maior parte dos conjuntos de habitações sociais da região metropolitana fica na periferia, muito pouco em Paris.
A região metropolitana de Paris, e numa certa medida a de outras cidades francesas, se dividiu de fato entre cidades que dispõem de habitações sociais, de esquerda, e municípios que oferecem muito poucas habitações sociais, de direita.
O acesso à moradia social, a serviços e atividades assegurados pelos municípios (cultura, esportes, etc.) era então considerado como um elemento da promoção das classes operárias. O nível de vida geral melhorava dessa maneira e não somente graças ao aumento dos salários. Era um “salário indireto”. Com a segurança social (acesso aos tratamentos, acidentes do trabalho) e a aposentadoria, a melhoria nas condições de moradia foi um elemento importante do “salário indireto” e da melhoria nas condições de vida dos trabalhadores até a crise dos anos 1970.
A mobilização social pelo acesso à moradia era em grande parte organizada pelos municípios e pelos partidos políticos de esquerda.
A negociação sobre o financiamento da moradia social se fazia no âmbito orçamental do Estado e do Parlamento. As decisões de construção eram tomadas pelos municípios e órgãos HLM, a demanda de acesso seguia um caminho burocrático e personalizado, ligado ao município.
A partir do fim dos anos 1970 se inicia um período de crise onde desemprego, precariedade do emprego e aumento das desigualdades se generalizam. As categorias sociais formadas pelos marginais, pelos sem-direitos e pelas pessoas em situação precária são cada vez mais importantes e visíveis.
A mobilização social na França pela volta da moradia social
A mobilização social na França em torno da moradia social está ligada na maior parte do tempo a uma reação ao sistema institucional. De um lado, existe a negociação e os conflitos no interior do sistema HLM, com os seus atores institucionais: Estado, cidades, partidos políticos de esquerda, associações de locatários. De outro lado, há todos os setores sociais excluídos do sistema que podem se mobilizar: associações e grupos reivindicam o acesso ao sistema para os mais pobres e/ou para todos os trabalhadores e pedem um aumento do número de construções e o controle de preços dos aluguéis. As associações de locatários se mobilizam dando prioridade à defesa do seu estatuto e à sua participação na gestão das moradias sociais.
Um ponto comum entre essas duas visões é a oposição às políticas neoliberais de mercado, que impedem o desenvolvimento da moradia social.
A moradia social “de fato” ou “tiers-habitat” (3) (sub-habitações)
Paralelamente às habitações sociais descritas acima, coexistem habitações sociais “de fato”. Essa moradia é produzida fora do “sistema HLM”. Ficando na área privada, são geralmente co-propriedades antigas e degradadas (4) que acolhem uma população de proprietários-ocupantes e de locatários de renda baixa que não podem se alojar na área privada e/ou que não satisfazem aos critérios impostos pelos arrendadores sociais (renda instável ou informal, sem-documentos, etc.) para obter uma moradia social. Apesar disso, esses moradores pertencem à mesma classe de renda do que a dos moradores de HLM.
Esse parque degradado, que pode apresentar riscos importantes em termos de saúde (insalubridade, saturnismo, etc.), apresenta não obstante o atrativo de ficar no centro da cidade, na “cidade existente” ao contrário dos conjuntos HLM, que ficam sobretudo nas áreas periféricas, onde geralmente há problemas com os serviços públicos (transporte caro e demorado, escolas distantes, etc.) e poucas oportunidades de emprego.
Contribui fundamentalmente para a mistura da cidade existente e “pertence a espaços urbanos que assumem sem esforço particular uma função de integração social e urbana”. (5)
Só em Paris, cerca mil imóveis insalubres foram recenseados no final de 2005, que, por causa da sua localização, são objeto de projetos especulativos. Por isso, existe hoje uma mobilização para reclamar a intervenção pública, para que o governo os compre, reabilite-os e os coloque à disposição para a classe popular que não pode mais morar no centro da cidade.
Enfim, a “tipologia” da moradia popular deve também levar em consideração a moradia social “especializada” ou habitações para trabalhadores imigrantes, para estudantes, etc.
vivienda de intéres social, acceso a la vivienda, diferenciación social, marginación social, marginación por la vivienda
, Francia
Le mouvement social et la lutte pour le logement populaire en France et au Brésil
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