Uma experiência do CTC - Centro de Trabalho e Cultura
11 / 1994
Mudar, inovar, criar são palavras inquietantes que trazem em si mesmas a transformação de algo pré-estabelecido para começar o novo, desvendar o desconhecido.
A experiência de utilizar o teatro, a música, a poesia, o soltar das mãos na dobradura do papel, o desenho e a pintura com adultos não é tarefa simples. Principalmente quando a maioria desses alunos são operários que trabalham em serviços pesados, saindo de casa às 4 horas da manhã, enfrentando uma jornada de trabalho de até 12 horas diárias (incluindo transporte)e querendo freqüentar a escola à noite, das 19 às 22 horas, se preparando para um curso profissionalizante.
Isso significa ter apenas 5 horas de sono diário e o convívio com a família apenas no final de semana, durante um ano inteiro. E tudo fica mais complicado ainda quando a própria educadora também está despertando para as linguagens expressivas e seus múltiplos usos na educação.
Indo devagar, experimentando aos poucos, observando os resultados, avaliando com os próprios alunos o dia-a-dia...Vamos começar! O ano é de 1993 e a primeira tentativa foi como uma brincadeira. Desenhar um auto-retrato. Lápis de vários tipos na mão, a mistura das cores. Tudo sem identificação.
Depois a troca: cada um analisando as caricaturas e tentando ver o outro no desenho, finalmente descobrindo um traço que identificava o companheiro:"Esse parece o Rei!"
"E esse é, tenho certeza, é Tião!"
A experiência na primeira semana de aula, descontraiu o grupo, criando um clima de camaradagem.
Com o passar dos dias, lá vem a monitora munida de gravador e fita cassete. Vamos à música: 8 de março, dia da mulher. Na fita só canções que falem das condições da mulher no amor, na vida, no trabalho...
Liga-se o gravador e os alunos começam devagarinho a se soltar. Alguns cantarolando, outros batucando nas mesas ou mesmo acompanhando com os pés o ritmo.
Ao fim de seis músicas, a discussão: escolher uma entre todas, que melhor represente a mulher brasileira e que toque os alunos pela beleza da letra, da melodia. A discussão se acirra e se toca mais uma vez a fita para que todos possam conhecer melhor as músicas. Finalmente escolhemos duas: Maria, Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant e Essa Mulher, na voz de Elis Regina.
Qual o significado de cada música? De que mulher as letras estão falando?
Qual o papel da mulher na nossa sociedade? Essas e outras questões foram amplamente discutidas, as letras das músicas interpretadas,para culminar numa redação sobre a mulher.
A partir dessas duas experiências, trabalhar com desenho e música, ficou gostoso, fácil, um exercício sempre solicitado e realizado em sala de aula. Mas como introduzir novas linguagens, novas experiências?
Chega o mês de agosto e mais da metade da turma está desempregada. O tema sobrevivência é uma discussão permanente, e casos de miséria são contados quase que diariamente.
Em uma dessas noites, chego com dois textos e uma idéia: dividir a turma em dois grupos e a cada um entregar um dos textos. Cada grupo lê e discute o texto e a tarefa é mais complicada: preparar uma pequena representação teatral com mímicas para apresentar o conteúdo de seu texto para o outro grupo.
Há uma certa resistência. Alguns alunos mais animados puxam o restante da turma: "vai ser bom, vamos virar atores!"
Os textos falam do mesmo problema. São eles: "O Bicho", de Manoel Bandeira e "Notícia de Jornal", de Fernando Sabino.
A preparação das enquetes leva mais de uma semana. Discussões animadas nos grupos, procura de sucatas para o vestuário, distribuição dos papéis: "Quem vai ser o homem morrendo?"
"E os comerciantes?"
"E o delegado?"
Todos vamos ser bichos, nós somos bichos?"
E chega o dia da apresentação. Os grupos um pouco inibidos, sem querer começar. E Célia puxa: "vamos gente, a gente vai ser o primeiro!" O grupo I apresenta "Notícia de Jornal". É um sucesso! Aplausos entusiasmados da galera! O grupo II perde a inibição e lá vem todo compenetrado para apresentar o poema "O Bicho". Novamente aplausos e assobios!
Sentamos todos no chão para conversar sobre o trabalho realizado. O bate-papo começa pela identificação dos dois textos. Em estilos tão diferentes falam sobre o mesmo problema: a fome e o que ela causa ao ser humano.
Todos nós ficamos sensibilizados pela beleza dos textos, a profundidade da mensagem. E mais uma vez, trazemos a situação para o nosso cotidiano, o que vemos nos nossos bairros, nos noticiários, dentro da nossa própria família, no seio da classe trabalhadora. Não esgotamos a discussão pois estamos, nós mesmos, esgotados emocionalmente.
A experiência foi rica, uniu a todos. Nos sentimos mais cúmplices na vida, prontos a experimentar novas linguagens que expressem nossos sentimentos. E, o aprendizado do português (o bicho da sala de aula)se torna mais prazeroso, flui mais fácil pelas vozes nem sempre consensuais, mas unidas pelo fato de serem expressões únicas de cada aluno, suas opiniões respeitadas pelo coletivo.
A educadora se refaz sempre nesses pequenos passos do criar, que motiva seus alunos e a motiva a continuar. E isso é a paixão que move a vontade de superar e superar-se a cada dia, na luta por uma educação acessível também à classe trabalhadora.
popular education, woman, living conditions, theater
, Brazil, Recife, Pernambuco
Através do insentivo à produção e leitura de fichas de capitalização de experiências pedagógicas, a rede BAM pretende favorecer a um processo de formação continuada junto a coletivos de educadores de jovens e adultos (hoje, existentes nos estados do Rio de Janeiro e Pernambuco). Está apoiado numa metodologia que valoriza a autoria e promove a interação entre educadores de diferentes contextos.
Experience narration ; Original text