07 / 2010
Introdução (1)
As sementes crioulas sem os propósitos e os conhecimentos dos agricultores(as) e de suas comunidades ficam estéreis em valores e cultura. E é no resgate e na revalorização da cultura que se constrói chão fértil de autoestima e felicidade. A iniciativa do kit Diversidade no Município de Guaraciaba, Brasil, é moderna e enraizada na participação mobilizadora. É deste tempo presente, embora tenha raízes cravadas lá nos primórdios das primeiras comunidades rurais. Algo pode ser mais atual que mobilizar gente para a alimentação saudável e autônoma em tempos de oligopolização do sistema alimentar e de crise alimentar e ambiental?
As sementes crioulas unindo gerações de agricultores familiares
As sementes crioulas do kit são frutos diretos, em sua maioria, daquelas cultivadas, reproduzidas, selecionadas e melhoradas, sempre de forma dinâmica e aberta, pelos povos agrícolas do mundo ao longo de milênios, dentro dos sistemas locais (e em outras escalas) de manejo da agrobiodiversidade. Por isso, desde o início da domesticação das plantas e do surgimento da agricultura, os seres humanos têm praticado a seleção e melhoramento dos cultivos de acordo com seus conceitos e estratégias de sobrevivência. Recentemente, com o advento das sementes ditas melhoradas a partir dos critérios paradigmáticos da chamada ciência moderna (leia-se das empresas agroquímicas!) o processo de reprodução das sementes crioulas foi impactado pela entrada de sementes de outros locais. Os agricultores do mundo muitas vezes utilizaram isto a seu favor agregando aos seus sistemas variedades e/ou características do seu interesse. Por outro lado, na maioria das vezes a entrada abrupta das sementes provindas do sistema formal, serviu para desestabilizar os sistemas locais de intercâmbio solidário e, pior, para marginalizar a cultura local.
As sementes crioulas desprovidas do conhecimento dos agricultores(as) são “estéreis”. Um município da região do oeste catarinense em certa ocasião adquiriu alguns milhares de quilogramas de sementes crioulas em outro município vizinho. As sementes foram para um ambiente no qual o conhecimento do seu sistema de cultivo já havia se enfraquecido e não estava sendo recuperado. Os agricultores ficaram revoltados com isso, pois as ditas sementes “não produziram bem”. A culpa recaiu sobre as sementes, quando na verdade estas não puderam se desenvolver adequadamente, basicamente, porque não fora respeitada a densidade de plantas por área adequada a cada variedade.
O mundo precisa das sementes crioulas. Cerca de 80% dos agricultores do mundo às utilizam nos seus cultivos, dependendo delas para a sua reprodução social. Por outro lado, as tentativas de homogeneização estão aí (im)postas, como é o caso das grandes monoculturas e agora a famigerada transgenia. Estas, mesmo pretensiosamente “salvadoras” não resistirão à lógica da vida em cujo sêmen está a teia da diversidade e o equilíbrio dinâmico, só alcançado quando diferentes participam no/do mesmo ambiente/comunidade.
Ao mesmo tempo em que o kit dá visibilidade às sementes crioulas, exercita a solidariedade e valoriza os conhecimentos informais locais, nos realça a função básica da agricultura: prover alimentos de qualidade a todos o mais perto possível de onde residem.
Abordamos nos próximos itens, acerca da importância do conhecimento dos agricultores(as), que em qualquer processo de desenvolvimento rural/regional orientado pelo adjetivo sustentável deverá servir de base firme. Será discutido a seguir este tema na perspectiva da experiência inovadora do projeto kit diversidade desenvolvido no Brasil, pioneiramente, no município de Guaraciaba, estado de Santa Catarina.
Agricultura, agrobiodiversidade e conhecimento informal
O futuro da humanidade depende da relação estabelecida entre os seres humanos e destes com as demais formas de vida e com os recursos naturais. Este “amanhã” necessariamente, passará pelos processos nos quais se dará a produção e apropriação de novos conhecimentos e pela compreensão e valorização dos conhecimentos informais historicamente construídos no seio das comunidades rurais e nas suas relações.
A produção do conhecimento informal, cujo sujeito central sempre foi o agricultor(a), praticamente não sofreu grandes alterações, até as descobertas da ciência moderna ligadas principalmente à genética, à química e à mecânica, que pela sua natureza estreita e rígida, passaram a fomentar modelos de agricultura não diversificados e a negar e ou ridicularizar o conhecimento dinamicamente acumulado ao longo dos milênios de agricultura(Canci, 2006).
Como uma invenção humana, a agricultura sempre teve na diversidade entre e intra-espécies uma das bases da busca da sua sustentabilidade. A conservação desta diversidade encontra ambiente favorável junto aos camponeses familiares. Ao cultivá-la, usá-la e trocá-la constantemente, estes praticam o melhoramento e possibilitam que na interação com o ambiente e com o entorno social, a evolução aconteça e o conhecimento seja construído e reconstruído constantemente.
O caráter dinâmico da agrobiodiversidade é importante na sua compreensão, já que desde os primórdios da domesticação, muita agrobiodiversidade foi gerada, transformada, amplificada e descartada de acordo com as necessidades e conhecimentos dos agricultores e as condições ambientais e culturais de cada época.
Tudo indica que neste processo, mesmo com as perdas naturais e deliberadas pelos agricultores, nas seleções cotidianas e nos cruzamentos entre variedades e espécies aparentadas, a geração de diversidade foi intensa e crescente. No entanto, em determinados momentos pode ter ocorrido a diminuição significativa da diversidade agrícola, para em seguida haver nova recuperação (Peroni, 2000).
Importante enfatizar que no trabalho do kit, os organizadores tomaram o cuidado de que junto às sementes distribuídas fossem as informações, os conhecimentos informais das famílias que tradicionalmente cultivam cada variedade disseminada. Este procedimento pode ser considerado adequado para que a semente esteja “inteira”, ou seja, que carregue os conhecimentos a ela agregados ao longo de anos e anos de cultivo. Uma garantia da continuidade e evolução da variedade em novas mãos.
Conhecimento dos agricultores e da academia: apenas diferentes
Mesmo sem jaleco branco, a figura do “doutor agrônomo” ou “doutor técnico” descritas por Paulo Freire (1983) ainda está presente no imaginário rural regional. Esta caricatura representa emblematicamente a aceitação cultural da falsa superioridade do conhecimento acadêmico sobre o informal, onde o técnico seria sujeito e o agricultor objeto.
Esta visão equivocada tem suas raízes nos sistemas de valores, pensamento e percepções que estruturam o paradigma de desenvolvimento ocidental, que por sua vez, encontra no método científico acadêmico a única abordagem de conhecimento considerada válida. Para Boff (2004), esta visão da ciência se caracterizou desde o seu princípio por negar a legitimidade de outras formas de conhecimento e de diálogo com a natureza. Nesta linha de raciocínio, o grande educador Paulo Freire (1983) também esclarece que, hegemonicamente, a visão mecanicista da ciência moderna se caracteriza “pela estreiteza de visão… e pelo desprezo da contribuição fundamental de outros setores de saberes”.
Convém enfatizar que apesar da sua centralidade excessiva, em diversos aspectos, a ciência moderna teve e continua tendo papel importante na melhoria das condições de vida da humanidade. Embora não seja o nosso foco, o computador que utilizo para escrever este texto é um bom exemplo dos avanços que a ciência possibilitou. Na agricultura são inúmeros, inclusive nos processos representados pela agroecologia.
Por sua vez, os sistemas informais de conhecimento estão baseados na experiência humana e nas interações sócio-culturais inclusive com o conhecimento formal. Seriam aqueles muitos conhecimentos construídos socialmente de forma solidária e, na maioria das vezes, com muito empirismo e experimentação. Portanto, no conjunto dessas intuições ecológicas que nascem a partir da experiência concreta dos agricultores(as) e de suas inter-relações sociais e com o mercado, é que identifica-se os sistemas de conhecimento informal.
Cada família de agricultores detém uma gama enorme de conhecimentos sobre todas as etapas e componentes do processo produtivo. Esses conhecimentos normalmente são aperfeiçoados a cada safra, bem como nos intercâmbios próprios das redes familiares e comunitárias de sementes e de saberes. A proposta do kit fortalece essas redes comunitárias sem desprezar o aporte da academia.
No entanto, o debate que o kit diversidade provoca é de que temos que desconstruir a legitimação ideológica e política da revolução verde, que através da produção e difusão de mitos procurou associar-se à modernidade, à eficiência econômica e técnica, à produtividade, ao conhecimento científico e à solução para superação da fome (Almeida & Navarro,1998). Segundo estes autores, a contra-face dessa mitologia desencadeou um amplo processo de desqualificação da agricultura familiar e dos sistemas informais tradicionais de manejo dos recursos naturais, que passaram a ser “associados ao atraso, à improdutividade, à indolência (…) e à falta de conhecimentos”. Diante dessa concepção, acentuou-se uma dicotomia entre o conhecimento informal dinamicamente construído ou re-elaborado pelos agricultores e o conhecimento formal desenvolvido a partir das estruturas acadêmicas, na medida em que não se protagonizaram espaços de diálogo, interação e complementaridade entre esses diferentes sistemas de conhecimento.
A busca da superação dessa falsa dicotomia estabelecida entre o moderno e o tradicional e entre o conhecimento informal dos agricultores e o conhecimento formal acadêmico também pode ser verificada no projeto do kit diversidade. Técnicos e agricultores discutem em condições equiparadas, ouvindo-se mutuamente. Os conhecimentos e experiências se fundem gerando novas possibilidades. Variedades desenvolvidas pelas estruturas de pesquisa formais, encontram-se “crioulizadas” e adaptadas aos sistemas locais de agricultura e de vida.
Em relação a isso, na pesquisa que realizamos durante o curso de mestrado, verificamos que os agricultores familiares possuem plenas condições de participar com qualidade e efetividade nas iniciativas de pesquisa, sendo necessário, para tanto, valorizar e integrar de fato, os seus conhecimentos. Um exemplo são as suas formas de avaliação, sobretudo as de natureza visual holística, fruto de seu fazer prático e reflexivo (Canci, 2006). Os sistemas de conhecimento informal e formal de manejo e as estratégias de conservação dos recursos genéticos ex situ (em Bancos de Germoplasma) e in situ (na unidade em cultivo), serão mutuamente fortalecidos nos seus objetivos, na medida em que houver iniciativas concretas de integração e complementaridade – como o kit diversidade. Ao agirem dentro de perspectivas paradigmáticas afins, essas diferentes abordagens poderão, portanto, ser complementares e melhorar os sistemas de manejo e conservação informal e formal.
Por fim, saliente-se que no interior da concepção do kit como um processo participativo de apoio ao desenvolvimento rural local, são criadas possibilidades concretas de construção de espaços de diálogo e interação horizontais entre os dois sistemas de conhecimento, que são esteios na edificação da sustentabilidade a partir do campo.
Conclusão
Tanto na extensão rural como na pesquisa agropecuária e no próprio desenvolvimento rural como um todo, os poderes dos conhecimentos da ciência formal e dos conhecimentos informais locais são visivelmente desiguais. Tão desiguais que muitas vezes os próprios agricultores(as) acreditam ser o seu conhecimento realmente inferior ao conhecimento técnico formal. Contribuir para o equilíbrio e a complementaridade desses dois sistemas deve ser uma busca incansável de quem luta em prol da agroecologia e do bom desenvolvimento rural de fato sustentável.
biodiversity, system of knowledge, seed, food sovereignty, green revolution
, Brazil
Este artigo faz parte de capítulo do livro Kit Diversidade: Estratégias para a Segurança Alimentar e Valorização das Sementes Locais. Organizado por Adriano Canci, Antônio Carlos Alves e Clístenes Antônio Guadagnin (2010). Editora Gráfica McLee - São Miguel do Oeste-SC- Brasil
Bibliografia
ALMEIDA, J & NAVARRO, Z. (Orgs.). Reconstruindo a agricultura: idéias e ideais na perspectiva de um desenvolvimento rural sustentável. 2. ed. Porto Alegre: UFRGS, 1998. 324p.
BOFF, L. Ecologia: grito da terra, grito dos pobres. Rio de Janeiro: Sextante, 2004. 320p.
CANCI, I.J. 2006. Relações dos sistemas informais de conhecimento no manejo da agrobiodiversidade no oeste de Santa Catarina. Centro de Ciências Agrárias, Universidade Federal de Santa Catarina, Florianópolis, SC (Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-graduação em Recursos Genéticos Vegetais).
FREIRE, P. Extensão ou comunicação? 7. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983. 93p.
PERONI, N. & MARTINS, P.S. Influência da dinâmica agrícola itinerante na geração de diversidade de etnovariedades cultivadas vegetativamente. Interciencia, v.25, n.1, p.22-29, 2000.
Conservación y uso sostenible de la biodiversidad agrícola: Libro de consulta. Los Baños, Filipinas: Centro Internacional de la Papa, 2003. p. 22-35. (Vol. 1: Entendiendo la Biodiversidad Agrícola)