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Um marco na consolidação do estado de bem-estar brasileiro - Parte 2

Patrus Ananias de Sousa

06 / 2008

continuação da primeira parte

Renda como direito

Como um ponto de interseção dos eixos da assistência social e da segurança alimentar e nutricional, o PBF garante uma renda mínima como um direito de cidadania, ao mesmo tempo que atua como um mecanismo possibilitador de outros direitos sociais.

Cabe ressaltar que, mesmo em contextos institucionais e políticos em que o sistema de proteção social encontra-se mais consolidado, o estabelecimento de instrumentos de garantia de renda mínima está na fronteira do aprimoramento dos desenhos de estados de bem-estar social.

A construção dos sistemas europeus contemporâneos de proteção social envolveu a criação de mecanismos nacionais de renda mínima em pelo menos 11 dos 15 primeiros países membros da União Européia (5), desde a Suécia, em 1957, até Portugal, em 1997 (Vanderborght; Van Parijs, 2006). Progressivamente, esses países incluíram a garantia da renda mínima em seu conjunto de políticas de proteção e promoção social. Mais recentemente, a legislação brasileira também ratificou o entendimento de que a renda mínima é um direito de toda a população brasileira, por meio da Lei 10.835, de 8 de janeiro de 2004 (Brasil, 2004).

Nesse ponto, é importante rebater algumas críticas que consideram o PBF um programa assistencialista. Mesmo que o programa se limitasse à transferência de renda, teria um papel fundamental na promoção do desenvolvimento social em nosso país. Ao ter a garantia de uma renda que assegure as condições elementares de vida, as pessoas deixam de depender da inserção no mercado de trabalho para assegurar a satisfação dos aspectos mais básicos e se libertam da chantagem da fome e da necessidade de subsistência a qualquer custo.

Dessa forma, a pessoa pode relacionarse com o trabalho como um instrumento de emancipação e de crescimento, em detrimento da função de instrumento de mera sobrevivência, ao ter a possibilidade de escolher não submeter-se a trabalhar em condições degradantes, aviltantes ou ofensivas à integridade e à dignidade humana.

As famílias beneficiadas passam a ter possibilidades de buscar empregos de melhor qualidade, com formalização das condições empregatícias e respeito aos direitos trabalhistas, e que propiciem a plena realização como sujeitos e como cidadãos e cidadãs. Além disso, o pleno exercício da cidadania pressupõe o atendimento universal de mínimos sociais. Uma vez que a exclusão limita fortemente a possibilidade de participação das pessoas nos mecanismos institucionais existentes nas democracias contemporâneas, é inconcebível pensar em participação cidadã de pessoas que nem sequer possuem, por exemplo, acesso regular à alimentação adequada.

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Vida mais digna

Para além do benefício financeiro propriamente dito, outro aspecto conceitual do PBF referese à transferência de renda como instrumento possibilitador de direitos sociais que, embora sejam requisitos básicos à cidadania, nem sempre encontram-se assegurados. Começa pelo já citado direito elementar à alimentação em quantidade, regularidade e qualidade adequadas, mas podemos citar ainda o direito à família, ou seja, o direito à convivência familiar saudável e harmoniosa, o direito à habitação, ao bem-estar, dentre outros.6

Por meio das condicionalidades, o desenho do PBF supera ainda a dicotomia entre focalização e universalização de políticas sociais. A transferência de renda é focalizada nos mais pobres, mas, ao mesmo tempo, pressupõe a responsabilidade do poder público em ofertar serviços universais e gratuitos de saúde e de educação para que as famílias possam cumprir as condicionalidades.

Outro ponto fundamental é que, ao exigir que as famílias mantenham suas crianças na escola e cumpram uma agenda de serviços de atenção básica à saúde para gestantes e crianças, o programa busca romper a transmissão intergeracional da pobreza, ampliando o escopo de capacidades das gerações futuras. Por meio de melhor formação e melhores condições de saúde oferecidas com o apoio do PBF, as gerações futuras terão um conjunto de capacidades mais desenvolvido, possibilitandolhes escolhas melhores e mais adequadas aos projetos e às aspirações pessoais, apresentando uma alternativa sustentável de emancipação. Portanto, a transferência de renda não só se apresenta como um direito em si mesmo como também reforça e possibilita o exercício de direitos sociais mais amplos. Constitui-se, assim, como a porta de entrada para uma vida cidadã em sua plenitude.

Outro aspecto a destacar é que, com as informações socioeconômicas disponibilizadas pelo Cadúnico, é possível localizar as famílias e identificar suas características, seus potenciais, suas carências e, assim, planejar e direcionar a oferta de serviços públicos de acordo com o perfil delas. O MDS tem desenvolvido diversas iniciativas nessa direção, como a parceria com o Ministério da Educação (MEC) para a inclusão no Programa Brasil Alfabetizado, e a parceria com a Câmara Brasileira das Indústrias da Construção para inserir os membros das famílias beneficiadas pelo PBF nas oportunidades de emprego geradas pelo Plano de Aceleração do Crescimento (PAC).

Impactos

Parte importante do processo de implementação do PBF é um processo rigoroso de avaliação e monitoramento, que serve para orientar correções de rumos, quando necessário, auxiliar na obtenção de apoio para expansão das atividades e prestar contas à sociedade sobre o retorno dos investimentos sociais. O MDS vem mobilizando uma série de parceiros institucionais tanto para o financiamento como para realização de pesquisas de impacto e acompanhamento do programa.

Instituições como o Ibase, a Universidade Federal da Bahia (UFBA), a Universidade Federal Fluminense (UFF), a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), entre outras, vêm coletando dados e produzindo importantes análises sobre a mudança que o PBF vem produzindo na vida das pessoas e na economia do Brasil. Organismos internacionais e instituições de fomento à pesquisa também vêm colaborando com o financiamento dessas atividades.

O conjunto das pesquisas mostra que o programa tem produzido efeitos imediatos e significativos sobre as condições de vida da população pobre. Os resultados apontam seu importante papel na redução da desnutrição infantil, na promoção da segurança alimentar e nutricional, na redução das desigualdades, na dinamização das economias locais, além de possibilitar o acesso a bens básicos de consumo que melhoram a qualidade de vida e a auto-estima. Em 2005, uma extensa pesquisa (a Chamada Nutricional) foi realizada com mais de 16 mil crianças menores de 5 anos de idade no semi-árido brasileiro (Pacheco; Paes-Sousa; Soares; Henrique; Pereira; Batista Filho; Martins; Alcântara; Monteiro; Conde; Konno, 2007). Comparando crianças de famílias beneficiadas menores de 5 anos com aquelas que ainda não haviam sido incluídas no programa, a prevalência de desnutrição, medida em déficit de altura para idade, foi 29,4% menor nas crianças atendidas pelo PBF. Na faixa etária de 6 a 11 meses, o impacto foi ainda maior: a ocorrência de desnutrição em famílias beneficiadas foi 62,3% menor do que entre as famílias que não participam do PBF.

No ano de 2006, a UFBA em conjunto com a UFF realizaram uma pesquisa nacional com os titulares do PBF (Silva; Assis; Santana; Pinheiro; Santos; Brito, 2007). Os resultados do estudo mostraram que 94,2% das crianças e 85% dos jovens e adultos de famílias beneficiadas pelo programa já conseguiam realizar, pelo menos, três refeições por dia. Esse estudo mostrou, ainda, que houve expressiva melhora na qualidade e na variedade dos alimentos disponíveis para as famílias.

Outra pesquisa, realizada em 2006, tratou dos impactos do PBF na condição social das mulheres (Suarez; Libardoni, 2007). As pesquisadoras identificaram a importância que o programa vem tendo na afirmação da autoridade das mulheres beneficiadas no espaço doméstico.

As entrevistadas pelo estudo afirmaram que passaram a ter mais influência nas decisões domésticas e a ser mais respeitadas pelos demais membros da família. Avanços importantes foram observados, também, na percepção das mulheres como cidadãs brasileiras. Ao serem instadas a lavrarem documentos – como certidão de nascimento e carteira de identidade para receber o benefício – passaram a perceber que fazem parte de um espaço social mais amplo, que vai além da vizinhança e do bairro onde vivem. Os dados das Pesquisas Nacionais por Amostragem de Domicílios (PNAD/IBGE, 2001-2006) também mostram importantes conquistas. Análises do período entre 2001 e 2006 mostraram que a desigualdade de rendimentos, medida pelo índice de Gini, caiu em média 0,7% ao ano nesse período (Soares, 2008). Decompondo-se os fatores responsáveis pela queda na desigualdade de renda observada em 2006, observa-se que o PBF foi responsável por 21% desse resultado.

Os dados da PNAD 2006 mostraram, ainda, outros importantes resultados. Contrário ao argumento muito freqüentemente citado pelos críticos, o PBF não funciona como um desestímulo ao trabalho: 77% das pessoas que recebem transferência de renda trabalham enquanto 74% das pessoas que não recebem transferência de renda trabalham. Além disso, os dados mostraram que os programas de transferência de renda não aumentam a informalidade no emprego: comparandose os números de 2004 e 2006, o crescimento da proporção de empregados com carteira assinada foi maior entre os beneficiados por programas de transferência de renda do que entre os que não participam desses programas.

Finalmente, a PNAD 2006 comprovou que as famílias mais pobres estão melhorando a qualidade de suas vidas, pois estão tendo maior acesso a bens de consumo básicos, no domicílio, como geladeiras e televisões. No último ano, o crescimento do acesso a geladeiras e televisões chegou a ser maior entre os beneficiados do que entre os não-beneficiados. O impacto do PBF é sentido para além da esfera da cidadania e da concretização dos direitos sociais básicos. Com a transferência de recursos financeiros diretamente às famílias, que têm liberdade na aplicação do benefício, utilizando-o para aquisição de bens e serviços de que têm mais necessidade, as economias locais vêm conhecendo outra dinâmica econômica. A afirmação é especialmente verdadeira para pequenas localidades do semi-árido – freqüentemente fora da rota de ciclos econômicos geradores de riqueza. Todos esses importantes resultados estão sendo obtidos com investimentos relativamente modestos comparados aos ganhos alcançados: no ano de 2006, o volume total de recursos investidos no PBF foi de apenas 0,35% do Produto Interno Bruto (PIB) brasileiro.

Diversas pesquisas estão em andamento e deverão produzir mais insumos para avaliação e permanente melhoria do programa, já que sabemos que ainda precisamos avançar mais até conseguirmos a plena erradicação da fome e da miséria em nosso país. Como mostraram os dados preliminares da pesquisa desenvolvida pelo Ibase, se o PBF, tomado isoladamente, não é suficiente para garantir a plena segurança alimentar e nutricional a toda a população brasileira, o mesmo vem produzindo impactos positivos importantes nessa direção.

Isso é relevante, até mesmo porque o PBF é um dos pilares da rede de proteção e promoção social que estamos trabalhando para consolidar, como já mencionado, diversas outras ações voltadas mais diretamente para a questão da segurança alimentar e nutricional – tais como o Programa de Aquisição de Alimentos da Agricultura Familiar ou o programa de construção de cisternas no semi-árido – e diversas ações na área da assistência social e na geração de mais e melhores oportunidades de inclusão social.

Consolidação da rede

Os resultados obtidos até aqui mostram o quanto já fizemos, mas também o quanto ainda temos que fazer. Como não investimos no passado o suficiente para construir uma sociedade inclusiva, a fatura de nossa dívida social é alta. Não devemos esquecer que a distância que nos separa de padrões de desenvolvimento humano aceitáveis para todos os nossos cidadãos e todas as nossas cidadãs ainda é enorme.

Nesse sentido, consolidar a rede de proteção e promoção social é garantir que todas as pessoas tenham as mesmas oportunidades, numa linha de ampliação e universalização dos direitos. Ainda precisamos incluir milhões de brasileiros nos direitos mais elementares da cidadania e da dignidade humana, como o direito à alimentação adequada, à educação de qualidade, a uma boa saúde. Portanto, precisamos seguir com o fortalecimento e aprimoramento do Suas, do Sisan, do PBF e das demais políticas públicas que visam aos objetivos maiores de emancipação das famílias, da redução das desigualdades e da erradicação da fome e da miséria de nosso país.

 

 

5 Grupo que inclui Alemanha, Áustria, Bélgica, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França, Grécia, Irlanda, Itália, Luxemburgo, Holanda, Portugal, Reino Unido e Suécia.
6 Essas dimensões estão alinhadas ao artigo 35 da Declaração Universal dos Direitos Humanos, ao afirmar que “toda pessoa tem direito a um padrão de vida capaz de assegurar a si e a sua família saúde e bem-estar, inclusive alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos e os serviços sociais indispensáveis, e direito à segurança em caso de desemprego, doença, invalidez, viuvez, velhice ou outros casos de perda dos meios de subsistência fora de seu controle”.

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