(Parte 2)
03 / 2010
Políticas públicas e oligopolização
As políticas públicas governamentais têm sido as principais emuladoras dessa modernização com tendência socialmente excludente e homogeneizadora de comportamentos e valores.
O crescente desenvolvimento dos métodos e técnicas de melhoramento de plantas pelas empresas privadas, desde a segunda guerra mundial, permitiu a produção de uma ampla gama de tipos de sementes congênitas, híbridas, sintéticas e, contemporaneamente, de organismos geneticamente modificados (OGMs) pela manipulação genética. Os novos conhecimentos e tecnologias de melhoramento de plantas induziram as empresas privadas multinacionais a pressionarem os poderes legislativos da maioria dos paises do mundo para a promulgação de legislação que garantisse os direitos dos melhoristas e o patenteamento dos seus produtos. Porém, esse tipo de pressão sobre os governos não é recente.
Um exemplo histórico correlato a esse tipo de imposição deu-se em 28 de março de 1883. Nessa data o Brasil foi signatário da Convenção de Paris que criou a União Internacional para a Proteção da Propriedade Industrial, na época sob a hegemonia dos países que detinham a tecnologia no mundo como a Inglaterra, França, Alemanha e os Estados Unidos (EUA). O Brasil, naquele ano, ainda em pleno escravismo, não possuía nenhuma universidade, enquanto os EUA já dispunham de 175 e na Inglaterra as universidades de Oxford e Cambridge já existiam há mais de 600 anos. Mesmo assim, o governo brasileiro predispôs-se a assinar tal convenção. Portanto, não é de se estranhar que governos favoráveis aos interesses dos grandes grupos dominantes locais e internacionais tenham aprovado continuadamente legislação favorável à oligopolização das sementes pelo capital estrangeiro e à legitimidade da propriedade intelectual.
Entretanto, essa pressão política das grandes corporações multinacionais não se restringiu às mudanças nas legislações nacionais para favorecerem os seus interesses econômicos. No caso particular da agricultura o conjunto das políticas públicas e das estratégias das instituições governamentais foi sendo ajustado aos interesses dessas corporações como se deu nas áreas da pesquisa agropecuária governamental, da assistência técnica aos agricultores e aos povos indígenas, do crédito rural subsidiado e da aquisição de produtos agrícolas pelo governo para fins de estoques reguladores. Essas políticas públicas foram indispensáveis para que as teses e as práticas do que então foi denominado de revolução verde fossem exitosas. E, na atualidade, para que os produtos transgênicos dominem o mercado.
Como o interesse pela geração de material genético transgênico por parte das grandes corporações multinacionais é muito elevado, seja com o objetivo da produção agrícola diretamente, seja para a produção farmacêutica, dada a possibilidade de patente da inovação e a expectativa do lucro potencial a ser gerado, tudo leva a crer que os centros de pesquisa governamentais, como os privados, já se tornaram reféns dessa tecnologia de manipulação genética. No Brasil, até 2002, foram autorizados 1076 experimentos em ambiente pela agência reguladora da biotecnologia (CTNBio) através de 171 instituições credenciadas com certificado de qualidade em biossegurança (CQB) para trabalharem com transgênicos (Rollo; 2003).
Está-se vivendo em todo o mundo um processo de privatização do material genético. Essa privatização está sendo realizada há décadas, ao menos desde 70 nos países do terceiro mundo. Ela se deu de maneira gradual e crescente pelo abandono intencional do papel das instituições governamentais na assistência técnica aos camponeses e aos povos indígenas e na geração científica e tecnológica de interesse público.
A privatização do material genético pelas empresas multinacionais está sendo a via mais fácil e segura de controle oligopólico dos mercados mundiais de alimentos, estes indispensáveis para a vida humana. Portanto, o controle oligopolista das sementes, em especial das transgênicas e daquelas que vierem a lhe suceder, não afeta apenas a saúde humana e ambiental pelo que se desconhece dos seus efeitos no meio ambiente amplo senso, mas, sobretudo, a segurança alimentar mundial.
Para os grandes empresários rurais essa privatização da pesquisa e da assistência técnica ainda lhes é oportuna. Entretanto, com a crescente oligopolização das sementes e dos demais insumos agrícolas e com a integração entre as empresas fornecedoras de insumos agrícolas e a agroindústria de transformação de alimentos, tudo leva a crer que mesmo os empresários rurais tornar-se-ão sufocados pela pinça econômica expressa nesse controle de produtos e de preços a montante e à jusante da unidade de produção rural.
A retirada ou redução drástica dos recursos financeiros governamentais para a produção científica e tecnológica na agricultura e para as instituições públicas de assistência técnica rural deu-se através de formas diretas e indiretas tais como:
• - a redução dos orçamentos públicos para essas áreas;
• - redução drástica do pessoal técnico e administrativo dessas instituições;
• - a realização de acordos e convênios entre as instituições governamentais com empresas privadas para a realização de pesquisas, tendo em vista a obtenção de financiamentos pelas empresas privadas;
• - o estímulo à assistência técnica rural privada ou através de cooperativas de serviços;
• - o amplo e continuado processo de formação de pessoal no exterior em universidades altamente dependentes de financiamentos privados, com a conseqüente ideologização da pesquisa e da assistência técnica a partir dos interesses das empresas privadas;
• - a cooptação de pesquisadores pelas fundações e empresas privadas através de bolsas de estudos avançados, de créditos para a pesquisa, de viagens para o exterior para a participação em simpósios, congressos e encontros, de participação comercial pela venda dos produtos gerados;
• - as pressões econômicas, políticas e ideológicas sobre os parlamentares e os dirigentes do poder executivo para a aprovação de legislação favorável aos interesses da privatização da pesquisa na agricultura e a redução dos orçamentos para a pesquisa e para a formação avançada de pessoal das instituições públicas ligadas à agricultura;
• - a direção intelectual e moral por parte dos setores dominantes dos governos e do empresariado sobre a maior parte da intelectualidade técnica e científica relacionada com a agropecuária de que a pequena agricultura familiar, seus saberes, habilidades de produtos como as sementes nativas eram reminiscências românticas de um passado já enterrado pela modernização tecnológica.
Resistência e superação
A resistência social dos camponeses e povos indígenas à exclusão social exigirá um processo prolongado de resgate das suas identidades social e étnica através da redescoberta de seus saberes, habilidades e práticas de produzir, de se alimentar e de cuidar da saúde, experiências essas de vida que rejeitaram porque lhes disseram que eram saberes e fazeres ultrapassados. Nessa redescoberta voltarão a conviver harmoniosamente com a natureza numa relação sujeito-sujeito e não através da percepção da natureza como recurso inesgotável podendo ser usufruído apenas para gerar lucros. Voltarão a celebrar as suas datas queridas, a se orgulharem das suas danças, canções, festejos ou comemorações ao vivenciarem ao seu modo os seus momentos de referências históricas e sociais. Não se sentirão mais inibidos ou envergonhados de conviverem com as memórias do passado, subjetivamente rejeitadas por que tradicionais.
No entanto, esse resgate deverá ser flexível de tal maneira que seja capaz de se apropriar criticamente dos novos conhecimentos que emergem cotidianamente, dos recursos tecnológicos e culturais que permitem reduzir os custos humanos para produzir e reproduzir a vida humana, vegetal e animal. Enfim, que o moderno não seja percebido e vivenciado como a negação do tradicional, mas como um movimento histórico em que a diversidade seja o elemento potencializador da vida social e pessoal.
O uso continuado da semente nativa ou crioula é a maneira social e ambientalmente mais contundente de resistência contra a exclusão social. É a forma mais direta de rejeição (negação) do modelo tecnológico imposto pelas empresas multinacionais oligopolistas de sementes híbridas e transgênicas. Essa opção converte-se em ação política construtiva não apenas por negar aquilo que vem socialmente excluindo os camponeses e índios, mas por opor-se a um processo de oligopolização na produção, na oferta de produtos alimentares no varejo e no modo de conceber o mundo.
A semente crioula, historicamente adaptada às mais diversas condições “edafo-climáticas” pelos camponeses e pelos povos indígenas, dá-lhes a possibilidade de implantar modelos de produção e formas de organização do trabalho familiar e ou comunitário que lhes permitem obter autonomia perante as políticas públicas e as empresas oligopolistas de sementes e insumos, assim como se inserirem eficazmente nos mercados de produtos agrícolas. Isso amplia as margens de escolhas, pois se pode produzir a partir dos recursos disponíveis: as sementes próprias e os insumos gerados na sua unidade de produção.
Ao diversificarem a produção poderão retomar, segundo cada realidade local e comunitária objetiva, a produção de alimentos para o autoconsumo, o artesanato, as formas de preservação de alimentos tradicionais, entre tantas outras iniciativas possíveis.
Ao se tornarem diferentes da mesmice do modelo dominante geram novas e diversificadas demandas de pesquisa e experimentação agropecuária e de tecnologia de alimentos e de assistência técnica. Exigirão, como sujeitos sociais, redefinições das políticas públicas e da relação público e privado. Produzirão e reproduzirão democraticamente suas concepções de mundo, rompendo com o pensamento único imposto pelas tentativas de oligopolização privada do saber e da consciência sociais.
Nessa dinâmica de mudanças passam da resistência para a proposição de novas maneiras de ser e viver a vida na sociedade. Nessa perspectiva contribuem com outras classes sociais e povos ameaçados de exclusão social para a superação do modelo econômico, político e ideológico dominante. Tornam-se sujeitos sociais.
A forma de resistência aqui sugerida para reflexão traz no seu interior a própria negação do modelo econômico atual, superando-o pelo exercício de um novo.
Alguns pontos podem ser considerados como os basilares para o direcionamento de iniciativas contra o oligopólio das sementes e como superação da tendência à padronização da dieta alimentar mundial:
• - assumirmos a responsabilidade pública de sermos contra a propriedade intelectual sobre qualquer forma de vida;
• - considerarmos os recursos genéticos como um patrimônio da humanidade;
• - lutarmos para que os governos decretem moratória na bioprospecção (exploração, coleção e recoleção, transporte e modificação genética) enquanto não existam mecanismos de proteção dos direitos de nossas comunidades camponesas e indígenas para prevenir e controlar a biopirataria;
• - consideramos a biodiversidade como a base para garantir a soberania alimentar, como um direito fundamental e básico dos povos, posições essas que não são negociáveis;
• - resgatarmos, cada um segundo suas possibilidades, e pormos em prática o plantio e a distribuição massivas das sementes “crioulas” de e em todo o mundo, como uma forma de resistência popular e de superação do modelo agrícola dominante.
Se esses pontos basilares possuem caráter estratégico da luta contra a tirania decorrente do oligopólio das sementes, do ponto de vista tático será necessário:
• - um amplo esforço de esclarecimento, motivação e mobilização da opinião pública com relação a essas situações de constrangimento ou de perda de liberdade de escolha sobre o que produzir e consumir: produção e, conseqüentemente, consumo de alimentos dirigidos por grupos oligopolistas internacionais;
• - as ações de denúncias e de protestos deverão dar-se a partir de movimentos de massa capazes de anunciarem à toda a população a tirania de novo tipo que está sendo exercida pelo controle privado das sementes e a tendência à padronização da dieta alimentar mundial;
• - estímulo e pressão sobre os governos para realizarem investimentos massivos diretos nas suas instituições de pesquisa agropecuária e de assistência técnica rural e ou através de organizações populares de produtores rurais para o resgate, a geração e a reprodução massiva de sementes varietais de domínio público.
Se a concepção de mundo neoliberal quis impor ao mundo o pensamento único, as empresas multinacionais oligopolistas de sementes (integradas à indústria mundial dos alimentos) desejam definir centralmente a natureza dos alimentos a serem produzidos e consumidos; ensaiam estabelecer uma nova dieta alimentar de tendência universal construída a partir de apenas alguns produtos básicos que favoreçam os seus interesses econômicos monopolistas; aspiram, pela manipulação e beneficiamento dos alimentos a serem consumidos, criar um paladar homogeneizado; e, em última instância, pelo direcionamento do que a população deverá gostar e ter como prazer à mesa, subalternizar as mentes e paixões das pessoas em todo o mundo.
Caso os movimentos de massa não impeçam essa ofensiva das empresas oligopolistas das sementes, estaremos adentrando em pouco tempo pelo portal da nova tirania: a definição centralizada do sentir e do vivenciar o prazer de comer (e beber). Quem sabe, a ditadura do paladar uniforme.
consumption, food sovereignty, farmer
, Brazil
Movement of Workers without land
Em junho de 2002, durante a realização da Conferência Mundial da FAO – ONU, a Via Campesina Internacional decidiu implantar a campanha “Sementes patrimônio do povo a serviço da humanidade”. Com o objetivo de fornecer subsídios para o trabalho dos militantes e membros das organizações sociais e camponesas do Brasil, assim como para o debate com o conjunto da sociedade brasileira, a Via Campesina Brasil organizou a publicação do livro Sementes - Patrimônio do povo a serviço da humanidade, editado pelo Editora Expressão Popular em 2003.
Contando com a contribuição de pesquisadores de diversos países, sob coordenação do professor e engenheiro agrônomo Horácio Martins de Carvalho, uma série de aspectos relativos às sementes, como os culturais, os científicos, os econômicos e alimentares foram abordados de diferentes ângulos.
Selecionamos desse livro um texto escrito pelo professor Horácio de Carvalho. Ele nos apresenta as relações entre os objetivos da grandes indústrais farmacêuticas e da agroalimentação e as mundanças dos modos de produção, de consumo e culturais que atingem os camponeses e indígenas em decorrência das transformações às quais as sementes, um patrimônio da humanidade, vêm sendo submetidas.
BAUDRILLARD, Jean (1968). Le système des objets. Paris, Galimard.
BAUDRILLARD, Jean (1995). A sociedade de consumo. Lisboa, Edições 70.
CANCLINI, Néstor Garcia (1995). Consumidores y Ciudadanos. Conflictos multiculturales de la globalización. México, Grijalbo.
Carvalho, Horacio Martins (2002). Comunidade de Resistência e de Superação. Curitiba, mimeo 48 pp.
RIBEIRO, Silvia (2003). Quiénes comen y quiénes nos comen, in La Jornada, México DF, 1 de marzo.
ROLLO, Luiz (2003). Transgênico deve monopolizar debate, in Folha de São Paulo, Caderno Especial Agrishow 2003, 28 de abril, p. 2.