Estamos no Fórum Social Mundial, em Porto Alegre (26 a 31/01/05). Há cerca de 150 mil pessoas de todo o mundo, reunidas sob o slogan: “Um outro mundo é possível”.
Fetraf-Sul/CUT e os ‘Europese Groenen’ [‘Verdes Europeus’] organizam um debate conjunto sobre ‘Leite e Açúcar’. É reconfortante ver quantas pessoas vieram participar. O conteúdo do debate também é consistente. Acho que é a primeira vez que os envolvidos, de ambos os lados do oceano, têm oportunidade de debater o tema em conjunto. Agricultores brasileiros e europeus são, à primeira vista, concorrentes. Os brasileiros se sentem ameaçados pelos laticínios europeus; os europeus pelo açúcar de cana brasileiro.
O subcontinente Brasil é maior do que os 25 países que, atualmente, formam a União Européia. Como é que vamos resolver isso? Parece uma situação na qual uma aliança é impossível. Porém, se você se aprofunda no tema, se você pergunta o que se entende por ‘soberania alimentar’ e se você tem coragem de falar sobre os dois modelos agrícolas conflitantes, percebe-se que estão todos no mesmo barco, à margem do ‘Oceano Agronegócio’. E que, portanto, é extremamente necessária e urgente a solidariedade entre os agricultores familiares da Europa e a Agricultura Familiar do Brasil. Altemir Tortelli, coordenador geral de Fetraf-Sul afirma com razão: “Não devemos discutir tanto o ‘Brasil’ e, sim, algumas multinacionais.”
E por que é que precisamos, novamente, envolver a soja na discussão? Só porque ‘Krunkel’, o fanático da soja o quer?!
É claro que não! Os laticínios e o queijo europeu somente representam uma ameaça ao mercado mundial e ao Brasil se houver pecuária leiteira intensiva na União Européia, no modelo ‘vacas holandesas e muita ração concentrada’. O ‘modelo holandês’ que (pre)domina, e isto a partir de um país com um território do tamanho de um selo no mapa-múndi mas multiplicado pelas áreas de produção de ração animal em regiões além-mar, e que era – até pouco tempo – o segundo exportador mundial de produtos agrícolas.
A elevada produção de 10 mil litros de leite/ano das vacas turbinadas, obrigadas a dar cria todos os anos, somente são possíveis com uma dose diária de ração concentrada. Ainda que a maior parte da soja seja destinada a suínos, aves, perus e peixes, a soja é um dos componentes principais da ração concentrada para o gado (dependendo do preço no mercado mundial do momento). O preço determina a alteração na composição das proteínas: farelo de soja, torta de algodão, leite em pó, etc. Graças à dobradinha ‘milho das lavouras nacionais e soja do exterior’, a dupla milho-soja é, aparentemente, indispensável na pecuária leiteira ‘moderna’. Tão indispensável quanto a necessidade da União Européia de ocupar o mercado mundial de laticínios, concorrendo com Nova Zelândia, Austrália e Estados Unidos.
Entretanto, projetos-piloto como os de ‘De Ploeg’, em Herselt [Bélgica] (ver crônica de 3 de junho de 2004: ‘Gramíneas-trevo como alternativa’), demonstram que os quatro estômagos de uma vaca não estão, na verdade, preparados para a overdose de lignina dos caules do milho. A ‘fórmula milagrosa’ da década de 60 (o modelo ‘milho-soja’, importado dos Estados Unidos) pode, perfeitamente, ser substituído por gramíneas-trevo. Trata-se da sabedoria dos antigos, de nossos antepassados. Os estômagos imploram por gramíneas. As vacas, por sua vez, desejam ser menos pressionadas. E o agricultor? Ele anda menos estressado. Suas vacas têm vida produtiva mais longa. Além disso, ele consegue ordenhar a um custo menor sem perda significativa no volume de leite do que com vacas que são obrigadas a – a qualquer custo – disputar a maratona da elevada produção.
A Agricultura Familiar brasileira sente-se ameaçada pelo leite em pó da Europa. Desde a rodada do Uruguai, da OMC, todo país signatário deve permitir a entrada do equivalente a 5% de seu consumo nacional. Ou seja, leite também. Em si, este jorro de leite é mínimo quando comparado com o tsunâmi de soja em direção à Europa, mas pode, mesmo assim, comprometer a renda de centenas de milhares de pessoas. No Brasil, 80% da pecuária leiteira está nas mãos da agricultura familiar e responde por 60% da produção nacional. Ela é encontrada, principalmente, nos estados de Santa Catarina e Rio Grande do Sul, mas nos últimos dez anos também cada vez mais em estados ao norte.
O Brasil também é o país onde, há mais de 70 anos, a Nestlé Suíça é imperatriz. No contexto mundial, Nestlé é o maior gigante de alimentos no trio: Nestlé, Philip Morris – Kraft, Unilever.
Nos últimos dez anos, o trono da Nestlé foi ameaçado pelo desafiante italiano Parmalat, mas este se afundou desonrado, em 2004, nos escândalos de corrupção. Vítimas? Pecuaristas no campo e trabalhadores das indústrias de laticínios. Das 43 fábricas que Parmalat adquiriu ao longo dos anos, atualmente – 2005 – só restam oito! Por isso, após o debate passamos à ação: ônibus lotados de agricultores realizaram uma manifestação em frente à fábrica vazia da Parmalat, em Porto Alegre.
Leite com açúcar
Felizmente, o que é pouco discutido nos debates atuais na Europa foi, hoje, levantado aqui. Em Flandres, tem-se a impressão de que a indústria de açúcar não deseja um novo tsunâmi. Desta vez de açúcar brasileiro.
Ao contrário, mas eles aproveitam para fomentar a animosidade entre os produtores de beterraba açucareira e os produtores/colhedores de cana-de-açúcar. A indústria ‘Suiker Tienen’ [Açúcar Tienen, parte da multinacional alemã Südzücker] tem grande interesse em matéria-prima barata. A indústria de refrigerantes, se possível, ainda mais. Eles simulam um gesto de grandeza, como se o acesso ao mercado de açúcar europeu fosse proporcionar algum benefício aos países mais pobres. Alguém afirma: “Os países ACP (1) nunca serão capazes de competir num mercado globalizado. A UE organiza um conflito entre os países mais pobres e os ‘países emergentes’, entre os quais o Brasil se encontra.” Ao contrário, o Brasil, enquanto maior produtor de açúcar, mal vê a hora de tapar os buracos. Os desertos de açúcar já estão sendo plantados e ampliados, antes mesmo da OMC ter emitido um parecer definitivo e antes da reforma da política do açúcar na UE. Tamanha é a ganância deles! Deles? De alguns grandes.
Além disso, durante o debate foi afirmado – corretamente – que não se trata somente de açúcar, mas também de álcool. Graças ao crescimento da assim chamada ‘energia verde’ (até 2020, deverá haver no mercado mundial 30% de álcool ou biodiesel), empresas estrangeiras investem, no Brasil, em refinarias de açúcar e usinas de álcool. Até o momento, a maior parte dos investimentos vem da França, mas os japoneses também começaram seus investimentos. Os grandes atores, atualmente, são Tereos, Sucden e Louis Dreyfus. Para mim, é um mistério o que se entende, por aqui, por ‘verde’ e ‘correto’, quando se observa a destruição ambiental provocada pelas monoculturas há mais de cinco séculos,chegando até a novas formas de escravidão. Também sobre isso houve um depoimento de um cortador de cana no Fórum.
Açúcar sem agricultores
Sim, há mais de cinco séculos. Portugueses e britânicos e agora franceses e japoneses (2).
Será que isso não pode lançar uma nova luz sobre a reclamação apresentada por Brasil, Austrália e Tailândia contra a UE na OMC? E sobre os planos de reforma da política do açúcar da UE?
É claro que a política do açúcar, com sua superprodução e suas práticas perversas de dumping, deve ser reformada, mas não para favorecer os grandes atores, sejam eles ‘Suiker Tienen’ ou Louis Dreyfus (3).
O Brasil também é um dos grandes atores, mas o Brasil do agronegócio: 90% da produção de açúcar está nas mãos dos grandes fazendeiros ou de empresas estrangeiras. A agricultura familiar produz somente 10% do açúcar brasileiro e para consumo próprio, com processamento e comercialização na própria região.
A agricultura familiar industrializada com pecuária leiteira, da Europa, pode até representar uma ameaça para os pecuaristas leiteiros no Brasil; porém, o açúcar da Agricultura Familiar não representa nenhuma ameaça para a Europa.
international solidarity, family unit farming, food sovereignty, exportation agriculture
, Brazil
Navios que se cruzam na calada da noite: soja sobre o oceano
Esse texto foi tirado do livro « Navios que se cruzam na calada da noite : soja sobre o oceano » de Luc Vankrunkelsven. Editado pela editora Grafica Popular - CEFURIA en 2006.
Book
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