Numa das crônicas anteriores mencionei a explosão do preço da soja no final de 2003. Uma das principais causas é a demanda crescente da China. Ontem à noite cheguei em São Paulo para participar do UNCTAD XI (Eleventh United Nations Conference on Trade and Development [Décima Primeira Conferência das Nações Unidas sobre Comércio e Desenvolvimento]) e qual é a primeira notícia que vejo no jornal ‘O Estado de S. Paulo’? Exatamente: o preço internacional da soja está sob forte pressão. A situação pode ser comparada ao curto pico nos preços que observamos por ocasião do famoso ‘roubo de grãos’ no ano de 1973. Naquela época, os mercados também ostentaram – por um curto período – preços elevados, enquanto os agricultores recebiam preços ‘normais’. É por isso que o episódio foi registrado como ‘o grande roubo de grãos’. Ao contrário do que ocorreu no ano da primeira crise do petróleo, à primeira vista as multinacionais (Cargill, ADM, Bunge, Louis Dreyfus) e os exportadores brasileiros (Noble Grain, Bianchini, Irmãos Trevisan) ainda não estão obtendo nenhuma vantagem. Devido à crise, o Brasil já deixou de arrecadar, desde 12 de maio de 2004, US$ 1 bilhão procedentes das exportações. Para o agricultor, o preço da saca de soja baixou dramaticamente em poucas semanas.
O que está acontecendo?
Antes do plantio, as sementes para soja convencional são tratadas com fungicidas. Às vezes, estas sementes tratadas são misturadas aos grãos da colheita subseqüente. Os chineses resolveram dar um basta nisso. Eles estão aumentando o rigor na fiscalização de resíduos de agrotóxicos na soja e estão recusando cargas de soja com contaminação superior a um grão por quilo. As empresas chinesas exigem até ‘contaminação zero’, ao passo que a norma em vigor nos EUA é de três grãos por quilo. No dia 9 de junho, o Brasil editou normas mais rigorosas do que as dos EUA na esperança de manter a vantagem em relação aos EUA na China. Nas últimas semanas, foram recusadas cerca de 239 mil toneladas de soja brasileira.
Um quadro junto ao texto (‘Cronologia da crise’) apresenta alguns números estarrecedores:
Exportação de soja em grão e óleo para China:
2001: US$ 542,5 milhões;
2002: US$ 950,3 milhões;
2003: US$ 1,583 bilhão.
Durante muitos anos, Roterdã – portanto, a União Européia – foi o principal comprador de soja. Em curto espaço de tempo, este lugar foi ocupado pela China, pelo menos no que se refere à importação de soja em grão (1). Cerca de 30% da soja (em grão) brasileira está sendo canalizada, via marítima, para a China. Dos Estados Unidos (40%) e da Argentina (75%!), o fluxo é ainda mais intenso. Por isso, é interessante observar que os argentinos propõem, nos últimos tempos, uma ‘Opep da soja’. Os brasileiros até simpatizam com a idéia, mas não estão dispostos a entrar no mesmo barco com seu maior rival em termos de soja, os Estados Unidos. Pode-se dizer que é irônico iniciar uma discussão, fazendo analogia com os países produtores de petróleo, de uma ‘Opep’ de soja. O cultivo da soja em grande escala é ‘o’ modelo para as práticas agrícolas agroindustriais, que exigem uma injeção de energia irresponsavelmente elevada.
OMC e soja
Para quem ainda não enxergou a relação com a ampliação da ‘liberalização’ do comércio mundial: em 1999, a China resolveu entrar na Organização Mundial do Comércio – OMC. A adesão entrou em vigor, efetivamente, a partir de… 2001. As conseqüências são enormes, tanto em termos de importações quanto em termos de desaparecimento de milhões de agricultores na China. Para o Brasil, aparentemente, as conseqüências também não devem ser subestimadas: um ‘boom’ de soja (o mesmo jornal informa a previsão americana de uma safra recorde de soja, de 66 milhões de toneladas para 2004-2005; em 2003-2004 a safra foi de ‘apenas’ 52,6 milhões de toneladas); aumento no desmatamento na região amazônica de 18 mil km2 ao ano para 25 mil km2 em 2002 e 2003; aumento no preço da terra (para plantio de soja) que triplicou no Rio Grande do Sul e dobrou no Paraná; continuidade do êxodo rural dos agricultores familiares.
Será que o Brasil não aprendeu nada com sua própria história de exportação?
Ouvi hoje o brasileiro e Secretário Geral da UNCTAD, Rubens Ricupero, lembrar que, em 1950, o café representava 73% das exportações e hoje, em 2004, representa apenas 4%. É evidente que a economia brasileira, hoje, é mais diferenciada mas – com a soja – este subcontinente está dando sinais de que pretende não só se dedicar a um único produto como também vender para um único país. E isto torna a situação e a formação de preço duplamente precária.
Neste mesmo dia, a ‘Folha de São Paulo’ apresenta um artigo digno de nota sobre a queda nos preços. Um estudo da OCDE – Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico – afirma que, nos próximos dez anos, a produção agrícola mundial terá um aumento maior do que o consumo. O título destaca de maneira sinistra: ‘Estudo projeta queda nos preços agrícolas’. Para o trigo, a previsão é de um aumento no consumo de 1,2% ao ano, enquanto a produção aumentaria com 1,8%. Para o farelo de soja, o aumento previsto é de 2,6%, tanto do consumo quanto da produção. Para óleos de origem vegetal: 2,9% consumo e 3% produção.
O que vai ser do camponês senegalês? Atualmente ele recebe apenas um terço (1/3) do que recebia em 1950 por seus grãos. Quanto receberá em 2014?
A crise atual está relacionada com a rejeição imprevista da China e com a supersafra esperada nos EUA. Isto foi suficiente para, imediatamente, pressionar o preço da soja. O que não quer dizer que o pecuarista na Europa deva pagar, automaticamente, menos por seu complexo protéico…
Ouço Marek Poznaski, da ONG Collectif Stratégies Alimentaires - CSA [Coletivo de Estratégias Alimentares] perguntar a Ricupero: “Por que não podemos fazer nada contra a queda dos preços? Os povos não têm o direito de se alimentar, proteger seus preços e seus mercados?” Ricupero responde que, de fato, no passado havia acordos sobre preços como o do acordo internacional do café. O mecanismo estava longe de ser perfeito, mas é infinitamente melhor do que a situação atual de preços aviltados. “Mas, infelizmente”, ele acrescenta, “o vento das políticas sopra, hoje, de outra direção. Não há ouvidos para isso.”
OMC ultrapassa UNCTAD
De fato, bem aqui em São Paulo, China, Brasil, Índia, Estados Unidos e União Européia apelam a UNCTAD para ‘desbloquear’ as negociações sobre agricultura na OMC. Pela primeira vez, desde a criação do GATT – General Agreement on Tariffs and Trade [Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio] (1947) e, posteriormente, a OMC (1995), surgiu – em Cancún (México, setembro de 2003) – um movimento de resistência organizada a partir do G 20. O presidente Lula é claramente o líder deste G-20 (Grupo dos 20). O problema é que a visão de exportação de países como o Brasil é a mesma dos EUA e da UE (2). Nas negociações pensa-se antes em termos de um conflito Norte – Sul do que a partir de um conflito entre dois modelos agrícolas. Em seu próprio âmbito, o governo Lula institucionalizou este conflito criando um ‘Ministério do Agronegócio’ e um ‘Ministério da Agricultura Familiar’. Devido à dívida externa e à necessidade de recursos, é óbvio qual modelo será beneficiado pelas negociações…, uma agricultura cujo crescimento anual, no Brasil, é bem maior do que o restante da economia. Atualmente, 80% das exportações brasileiras estão ligadas ao agronegócio.
Se a OMC for desbloqueada, é porque a agricultura de exportação saiu vitoriosa. Desde a Rodada do Uruguai, do GATT (1986-1994), UNCTAD perdeu muitas de suas plumas e está condenada a uma existência impotente e inativa. Será que a UNCTAD reencontrará seu papel na atual São Paulo de Lula ou será um aliado que não acrescenta nada?
11 de junho de 2004.
soy, international trade, WTO, commercial competition, environmental degradation
, Brazil, China, United states
Navios que se cruzam na calada da noite: soja sobre o oceano
Esse texto foi tirado do livro « Navios que se cruzam na calada da noite : soja sobre o oceano » de Luc Vankrunkelsven. Editado pela editora Grafica Popular - CEFURIA en 2006.
Book
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